MORTE MATERNA ALÉM DOS NÚMEROS

Um retrato da morte materna no estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2009 e 2013

reportagem
Vitória Lourenço

arte
Renato Cafuzo

Mulheres jovens, negras e com baixa escolaridade. Esse é o perfil das mães que mais morrem no período de gestação, parto e pós-parto. Os números revelam o racismo institucional e a desigualdade histórica.

Todos e todas nós em algum momento fomos gerados por uma mulher. É curioso olhar pesquisas voltadas para a temática materna e perceber que muitas das vezes não conseguimos entender as mães como mulheres também. É no mínimo contraditório tomar consciência de que a forma como as mulheres-mães são retratadas nas pesquisas sugere que elas são apenas números de uma estatística e resultados de uma equação. Justamente pela maioria das pesquisas esboçarem mulheres-mães puramente como estatísticas, esta pesquisa quer falar do perfil dessas pessoas.

Este texto apresenta reflexões da pesquisa realizada durante a residência no Data Labe, sobre mortalidade materna.  O Trabalho esboça, a partir de dados de morte materna no Estado do Rio de Janeiro, quem são as mulheres-mães que mais morrem no ciclo gravídico-puerperal (gestação, parto e pós-parto).

Quando falamos de morte materna, podemos especular o perfil das mulheres que mais morrem. Mas o que os dados dizem?

Em cinco anos, quase mil mulheres morreram durante a gestação, parto e pós parto, no estado do Rio. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), países em desenvolvimento tem índices mais elevados de morte materna. A OMS também indica que a maior parte dos óbitos maternos são relacionados a causas evitáveis, isto é, há uma relação entre gestão de políticas de saúde e mortalidade materna. Mas quem são essas mulheres-mães?

Mulheres-mães negras, com 4 a 7 anos de estudo e jovens com idade entre 19 e 29 anos – esse é o perfil das mulheres que mais morrem por causas relacionadas ou agravadas pelo ciclo gravídico-puerperal.

As mulheres-mães que morrem e seu perfil

Começar a identificar não mais códigos, mas sim mulheres foi o que deu humanidade a minha pesquisa. Agora, eu não trabalhava mais com números absolutos, mas sim com algumas características gerais (os microdados são anônimos) dessas pessoas. E, aqui, por mais que eu tente esboçar o perfil dessas mulheres dificilmente conseguirei contar de fato quem elas são, suas histórias pessoais, e nenhuma apresentação faria juz a essa questão.

Entretanto,  a recorrência de características expressa também a recorrência com que a morte materna atinge certas mulheres. A fim de esboçar esse perfil, elegi as variáveis (valores de uma pesquisa) “anos de estudo”, “idade” e “raça/cor”, pois por meio delas é possível estabelecer relações entre grupos sociais e a política de saúde.

Ter acesso a quantos anos essas mulheres-mães estudaram nos ajuda a entender não só como a educação formal se relaciona com o acesso a política de saúde, como também pode apontar uma relação entre vulnerabilidade econômica e morte materna. De forma geral, o dado “anos de estudo” já mostrou em pesquisas anteriores uma relação com rendimento salarial. O gráfico a seguir destaca os percentuais dos óbitos maternos por anos de estudo das mulheres-mães.

Taxas anos estudados
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Podemos evidenciar que mulheres com 8 a 11 anos de estudo são aproximadamente 29% das que morrem. No entanto, a incidência de óbitos maternos é maior em mulheres que estudaram entre 4 e 7 anos, cerca 34%. Assim, pude apontar que a maior parte das mulheres-mães que vem a óbito possui o ensino fundamental incompleto, sugerindo também que a morte materna atinge mulheres pobres.

Mas será que esse elemento (anos de estudo) representa que há mais adolescentes-mães morrendo? Acredito que a resposta para isso revele questões muito mais profundas e complexas em nossa realidade. Por mais que alguns dados mostrem que o número de gestações na adolescência tenha crescido, pelo menos no estado do Rio de Janeiro, mães adolescentes não são as que mais vêm a óbito em decorrência da maternidade.

Nesta pesquisa se tornou evidente que, na realidade as mortes de mães-adolescentes são cerca de 11% e que a porcentagem de mulheres jovens (com idade entre 19 e 29 anos) que morrem em decorrência a alguma complicação relacionada à gestação, ao parto e pós parto é maior, chegando a aproximadamente 46%. Não retirando a importância de investimento preventivo em políticas públicas de planejamento familiar para jovens e adolescentes.

Taxa segundo idade

Acima: mulheres com idade entre 19 e 29 anos representam quase a metade das mães que morrem nessas circunstâncias. Ter acesso a esse indicador nos ajuda a romper com superstições sobre as causas de morte materna e sobre o corpo feminino – como o corpo da mulher não estar preparado para o parto –  e possibilita compreender sua incidência.

Quando tratamos da idade em que as mulheres mais morrem, no período estudado, vale ressaltar que mais mulheres morreram aos 28 anos. Já quando voltamos o olhar para o ano em que mais mulheres morreram, ano de 2009, a maioria dessas mulheres tinha 27 anos e dessas, 137 eram negras.

Outra variável analisada foi raça/cor. Trazer para essa pesquisa o recorte racial nos ajuda a compreender se morte materna também é um dos desdobramentos do racismo e como as políticas públicas de saúde podem ser um fator importante quando voltadas para a população negra. Até aqui, em minha análise posso afirmar que a incidência de morte materna é intensamente maior em mulheres negras*. Em 5 anos, um total de 608 mulheres negras morreram no Rio de Janeiro, isso corresponde a 67% das mulheres do universo pesquisado, enquanto 31% das mulheres que morrem nesse ciclo são brancas. Essa disparidade não acontece simplesmente pela cor da pele e está atrelada a desigualdades históricas e ao racismo institucional*.

*O racismo institucional provoca uma série de desigualdades na distribuição de serviços (públicos ou não), benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população do ponto de vista racial.

*O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística classifica como negra mulheres que se auto declaram pretas ou pardas.

Das 608 mulheres-mães negras que faleceram nos 5 anos estudados cerca de dois terços ocorreu dentro da capital do RJ, aproximadamente 66%. Os 3 principais estabelecimentos de saúde onde mais morrem mulheres negras são localizados em regiões periféricas da cidade, Zonas Norte e Oeste. O número de morte dessas mulheres-mães nesses hospitais corresponde a 33% do total das mortes de mulheres negras. O ano de 2011 foi o ano onde encontramos o menor número de mortes, entretanto as taxas de mortes de mulheres negras referentes a esse ano subiram aproximadamente 5%.

Em qual momento as mulheres-mães morrem mais?

Pude perceber que a maior parte das mulheres, cerca de 65%, que vieram a falecer nesse ciclo, morreram até 1 ano após o parto, no período conhecido como puerpério enquanto 31% morreram durante a gestação. O  gráfico ilustra de forma simplificada as proporções.

Ainda sobre o momento do ciclo com maior incidência de mortalidade materna, pude constatar que as causas mais frequentes são evitáveis, como a OMS assinalou. As principais causas de morte materna nesses casos são:

  • Doenças do aparelho respiratório complicado pela gestação, parto e pós parto
  • Doenças do aparelho circulatório complicado pela gestação, parto e pós parto
  • Morte obstétrica de causa não especificada.

Essas causas são consideradas evitáveis quando relacionadas a uma assistência básica de prevenção e principalmente condições de acesso à saúde. Gestação não adoece mulheres! A  falta de detecção de doenças, a má avaliação dos riscos da gestação e da condução adequada do sistema de saúde, sim, podem agravar quadros.

Gestar, parir e atravessar o pós parto são atos de saúde, não doenças. Por que nós ainda continuamos morrendo nas mãos do sistema obstétrico? No SUS ou  na rede privada, o direito de acesso a informação e a saúde de qualidade é um princípio fundamental.

Metodologia

Minha pesquisa foi realizada a partir do banco de dados do Sistema Único de Saúde (DataSUS) e de dados fornecidos através da LAI (Lei de Acesso a Informação). O órgão responsável por disponibilizar os dados referentes à saúde é o Ministério da Saúde (MS). Na primeira experiência de solicitação do banco de dados, infelizmente, o MS negou acesso alegando que disponibilizar tal banco poderia comprometer a segurança e o anonimato dos usuários. Contudo, os mesmos dados estão disponíveis no site do DataSus.

O período de estudo foi selecionado em função da reorganização dos Comitês de Mortalidade Materna (2008), que têm como objetivo a investigação das taxas de mortalidade materna e suas causas. Vale destacar que os casos trabalhados tiveram uma taxa de investigação superior a 97%. Como uma proposta de estudo inicial, escolhi analisar apenas o intervalo dos primeiros 5 anos após a reorganização dos comitês.

Para trabalhar os microdados disponibilizados no site do DataSus, tive que aprender a usar o TabWin, um programa específico para lidar com os dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Após a raspagem dos dados (processo de coleta), foi realizada a limpeza dos mesmos com o programa OpenRefine, fazendo com que esses dados sobre morte materna se tornassem legíveis para pessoas, já que em um primeiro momento eles eram codificados. Com os dados limpos, foi possível perceber o tamanho da problemática “morte materna no estado do Rio de Janeiro”. A análise dos dados e processo de cruzamento entre variáveis foi feita através do GoogleSheets, uma ferramenta gratuita e acessível. Para a apresentação e visualização dos dados, foi necessário utilizar o Infogr.am uma ferramenta online para elaboração de infográficos.

A base se encontra disponível aqui: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0901&item=1&acao=26

Os Comitês de Vigilância de Mortalidade Materna surgiram nos anos 90, com a finalidade de reduzir as taxas de mortalidade materna em consonância a uma série de debates para a construção de mecanismos para compreensão destes e avaliação das ações de saúde nesse campo. Em 2008, ocorreu no Brasil uma reestruturação destes comitês e um refinamento das ferramentas de prevenção de óbitos, proporcionando avanços.

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