reportagem: Thaynara Santos
arte: Giulia Santos e Nicolas Noel
edição: Elena Wesley e Fred DiGiacomo
Distribuídas entre partidos de esquerda, centro e direita, as candidaturas trans ganham mais espaço nas eleições 2020, subindo de 89 para 281 nomes em comparação a 2016. Articulação em movimentos sociais, uso do nome social e acesso às cotas de gênero podem ser fatores que colaboraram para ingresso de mais transexuais e travestis na política partidária.
“Um corpo sem juízo que não quer saber do paraíso. Mas sabe que mudar o destino é o seu compromisso”. Aos 13 anos, quando compôs “Corpo sem Juízo”, a cantora Jup do Bairro buscava expressar a sensação de não pertencer a si mesma, questionamento feito por tantas pessoas trans diante das imposições sociais de gênero.
Enquanto a artista da zona sul de São Paulo reivindica seu direito à vida em verso e melodia, outras centenas de travestis e transexuais de todo o Brasil se filiam a partidos políticos. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) mapeou um aumento de 215% de candidaturas trans em 2020: de 89 concorrentes nas eleições de 2016 para 281 nas disputas eleitorais que acontecem no próximo domingo (15). No país onde a população trans ainda vive à margem do acesso às políticas públicas, surgem representantes que poderão reformular o atual quadro de exclusão.
Benny Briolly faz parte deste time de estreantes, mas não imaginava que voltaria às mesmas ruas onde trabalhou como camelô para, ao invés de clientes, persuadir o eleitorado. Orgulhosamente negra, travesti e favelada, ela é a primeira candidata trans de Niterói e conhece bem a Casa Legislativa do município que fica na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em 2017, Benny já havia rompido paradigmas ao se tornar a primeira assessora parlamentar trans da Câmara, pelo mandato da agora deputada federal Talíria Petrone (Psol).
“Na Câmara, atuei na Comissão dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente. Participo do coletivo Orgulho e Luta Trans (OLT), que ajudei a fundar para debater e propor mudanças na vida da população trans e travesti de Niterói e São Gonçalo. Junto à OLT, organizei encontros de travestis na favela, rodas de conversa sobre saúde e trabalho, e ações solidárias que garantiram cestas básicas para as travestis durante a pandemia”.
Foi no curso de jornalismo em que Benny se encantou pela política, após um protesto de alunos contra o aumento das mensalidades, até se aprofundar nas lutas de igualdade de gênero e raça e se aproximar do Psol. A niteroiense do Morro da Penha acredita que a ampliação das candidaturas tem relação direta com a organização política em movimentos sociais e nos partidos que contribuíram para dar mais visibilidade às pautas da população trans. Benny também defende que estes espaços sejam cada vez mais ocupados.
“[O aumento de candidaturas] surge da necessidade de termos nossas pautas e reivindicações defendidas por pessoas que tenham nossos corpos, que carregam na vivência a experiência de ser marginalizado dos processos de decisão. Somos o país que mais mata pessoas trans no mundo, e isso requer uma tomada de posição também”. Nos dez primeiros meses de 2020, 151 pessoas trans foram assassinadas, 27 casos a mais do que o total registrado em 2019.
“Meus olhos cansados se abrem pra um novo dia
Engulo a saliva da minha própria rebeldia
E quem diria que um dia cê me ouviria falar?”
Aliado ao engajamento ativo das pessoas trans, outros três fatores podem ter contribuído para o recorde de candidaturas de 2020, conforme avalia a secretária de articulação política da Antra, Bruna Benevides. O primeiro marco teria sido em 2018, com a autorização do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para o uso do nome social nas candidaturas e inserção no título de eleitor, o que provocou, no mesmo ano, o cadastro de 534 eleitores. Meses depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que transexuais e travestis têm o direito de alterar seu nome no registro civil sem precisar se submeter ao procedimento médico de redesignação sexual ou pedir autorização judicial. No ano seguinte, a Resolução 23.609/2019 do TSE permitiu às mulheres trans concorrer às cotas femininas dos partidos políticos, reforçando que as a reserva de vagas considera gênero, isto é, a forma como a pessoa se identifica, e não o sexo com o qual nasceu. Para Bruna, a possibilidade de se candidatar com o nome que as representa faz toda a diferença.
“A gente vive numa sociedade muito legalista, então mesmo sendo uma mulher trans, é como se isso só tivesse validade a partir de um documento que diz isso. Conheço pessoas que não solicitaram o auxílio emergencial porque [no cadastro] não tinha o campo do nome social. Após o TSE abrir essa possibilidade [do uso do nome social], inclusive com a participação no fundo feminino, [funciona] exatamente porque está institucionalizado, podemos dizer diminuir o enfrentamento, pelo menos em partes, porque a gente sabe que tudo o que puder ser feito para excluir, vai ser feito”.
Com as candidaturas lançadas, outros desafios surgem. O Mapeamento de Candidaturas de Travestis, Mulheres Transexuais, Homens Trans e Demais Pessoas Trans publicado pela Antra aponta que entre as 63 candidaturas entrevistadas, 74% afirmaram que o apoio dos partidos, seja material, pessoal ou financeiro, é insuficiente. E não é apenas nos partidos onde as candidaturas encontram obstáculos. Gilmara Cunha, que disputa uma cadeira na Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo PT, salienta o quanto é difícil ser vista como uma representante possível pela sociedade, mesmo pelas pessoas que se dizem progressistas.
“A população ainda nos vê como alguém que não tem intelectualidade suficiente para ocupar esse lugar. Tenho percebido na minha candidatura o quanto esse corpo é rejeitado quando as pessoas pegam o panfleto, leem ‘mulher trans’ e isso gera um bloqueio, porque elas estão acostumadas com uma Câmara com mulheres e homens cisgênero e heteronormativos. A gente visibiliza os corpos trans, mas não os queremos nos espaços de decisão. Até mesmo aquelas que se dizem de esquerda, progressistas, falam ‘tô com você!’, mas uma coisa é você dar tapinha nas costas, outra é ir lá e votar”.
“Não considero um aumento. Temos 484 candidaturas LGBTQI+, porém 4% são de mulheres e homens trans. É a mesma coisa que a gente comemorar a primeira travesti doutora. Não é um avanço. Se a gente tem milhões de mulheres travestis, transexuais e homens trans no Brasil e só uma doutora, é preocupante. Onde está o problema? Nos espaços escolares, pois são excludentes”.
A presença cada vez maior da população trans na política partidária leva ativistas a discutirem se a representatividade por si só é eficaz. Isso porque os partidos de direita detêm 38,5% das candidaturas de 2020. Militar e pesquisadora, Bruna Benevides argumenta que se candidatar em partidos que são contra pautas de Direitos Humanos é contraditório.
“Ninguém quer conhecer, se preocupar pra quê?
Nesse caminho falho eu não ganho o que mereço receber”
“[Há partidos que] seja no discurso, por falta de ações ou omissão, ou pior, por proposição de projetos de lei que ferem os direitos das próprias pessoas trans. É uma representação que não representa, sempre tutelada, limitada às decisões partidárias e às pessoas que realmente têm o poder de decisão. Então, é óbvio que uma pessoa trans em um partido de direita contra a identidade de gênero não vai conseguir aprovar projetos de lei ou qualquer outro projeto pró-LGBTI+”.
A ativista lembra que antes de governos mais progressistas assumirem, a maioria das candidaturas LGBTI+ pertenciam a partidos de direita, geralmente “pessoas que tinham poder aquisitivo, tiveram oportunidade de estudar, que eram brancas ou que estavam alinhadas com a branquitude”. Apesar da crítica, Bruna compreende os motivos que podem levar as pessoas trans a procurarem ou aceitarem convites de legendas conservadoras e cita a polarização e a necessidade de aceitação como alguns deles.
“É como lançar à própria sorte e não ter direito igual”
“Há uma criminalização de determinados movimentos, então dizer que luta pelos Direitos Humanos é visto como algo negativo neste cenário de polarização. Vejo pessoas tentando escapar desses rótulos. Somos plurais! Tem pessoas trans conservadoras, bolsonaristas, e isso é preocupante, porque se a gente for estudar sobre a constituição da direita e da esquerda, a gente vê realmente que na direita não cabem os trabalhadores, as prostitutas, as pessoas negras, as pobres, etc. Então, se colocar nesse lugar, é uma aventura que pode ser positiva para a pessoa, mas não para o coletivo”.
Como solução, a ativista sugere a “inserção de pessoas trans no debate coletivo, para que entendam que não é só disputa política, e sim um compromisso com a coletividade, pautando uma agenda progressista que não cabe em muitas formas com as quais a direita escolheu operar”.
“Meu corre é longo, mais um pulo chego onde quero chegar”
Benny e Gilmara exemplificam o perfil das candidaturas trans do Brasil em 2020: mulheres negras e faveladas, que fogem das recorrentes estatísticas de violência, baixa expectativa de vida e dificuldade de exercício da cidadania, para ressignificá-las. O desafio, no entanto, não é de responsabilidade exclusiva das pessoas trans. Ao contrário, requer o envolvimento de toda a sociedade e a reformulação de escolhas políticas que superam as questões de gênero.
Gilmara defende que as questões de raça e classe precisam estar na pauta das candidaturas trans. A petista propõe que a favela seja entendida como parte da cidade e, por isso, merecedora dos direitos que chegam apenas no asfalto.
“As pessoas de classe média e brancas usufruem de todos os direitos humanos básicos, e nós, moradores de favela, ainda não. O único direito que a gente tem é a segurança pública, que é dito uma guerra contra as drogas, que nada mais é do que uma guerra contra os pobres, negros e favelados. Por mais que outras pessoas do movimento LGBT reivindiquem o casamento e a adoção, nós estamos reivindicando a vida, a existência”.Na linha de frente de sua própria história e, agora, como opções de voto nas urnas brasileiras, Gilmara, Benny, e as travestis e pessoas trans do país gritam os versos de Jup do Bairro: “Mas eu resisto, eu insisto, eu existo”!
Esta reportagem foi produzida em parceria com a ECOA/UOL e você também pode ler aqui.