CIRANDA NÃO É BAGUNÇA

Você nunca mais vai usar o termo “esquerda cirandeira” depois de conhecer o Festival de Cirandas de Manacapuru no interior do Amazonas.

Em 2016, durante manifestações contra o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, integrantes do PCO (Partido da Causa Operária) impediram integrantes do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) de dançarem uma roda de ciranda, como parte do protesto. 

A partir daí, virou meme o termo “esquerda cirandeira” que seria utilizado de forma pejorativa para criticar pessoas que seriam de uma  “esquerda Nutella”, mais chegados ao oba-oba, do que à luta, e mais ligadas à elite intelectual do país do que às classes trabalhadoras. Mas quem disse que ciranda é bagunça?

O data_labe foi até Manacapuru, no interior do estado do Amazonas, conhecer os detalhes do Festival de Cirandas de Manacapuru, um movimento cultural que envolve música, dança e indumentárias. Nossa equipe acompanhou os detalhes do evento, conheceu a Ciranda Tradicional e acompanhou os primeiros ensaios para a Live das Cirandas que ocorrerá neste sábado (28).

Uma princesa flor no meio da Amazônia

Manacapuru , chamada de princesa do Solimões, é uma cidade do interior do Amazonas, localizada à margem esquerda do Rio Solimões. A cidade possui uma população estimada de mais de 98 mil pessoas.

Manaca, em tupi, significa flor e puru significa enfeitiçado, matizado. Manacupuru era habitada originalmente pelos indígenas do povo mura. Só aqui eu já tenho duas coisas para te contar sobre as cirandas de Manacapuru. Uma das agremiações da ciranda chama “Flor Matizada”, e a outra “Guerreiros Mura”, ambas uma homenagem consciente à história dessa cidade. Mas pra tu ver como o povo de lá é abusado ainda tem mais uma agremiação na cidade: a Tradicional.

Tá bom pra ti?

As três agremiações disputam todo ano o título de campeão do Festival de Cirandas de Manacapuru, no parque do Ingá – o Cirandódromo. As agremiações montam um espetáculo com itens obrigatórios, o cordão de bailado, que dança ao som de músicas inéditas, cantados por um “cantador”.

O presidente da Ciranda Tradicional, Magal Pinheiro, 40, diz que “a Ciranda Tradicional conta com mais ou menos 350 participantes na arena para competir o festival, e por ano o orçamento é de aproximadamente 180 mil reais”. 

Desde 2020, o Festival Anual de Cirandas de Manacapuru está sendo realizado de forma online. Para esse ano, Magal diz que o número de participantes cairá para 120 e não haverá música inédita.

Festival de Cirandas de Manacapuru. Fonte: Wikipedia.

Na Amazônia, a ciranda é nossa.

A música da ciranda é envolvente, aceleradíssima, e mistura o gingado do cavaquinho, percussão no contratempo e metais empolgantes em um ritmo que junta música caribenha, forró e tradições indígenas.

A ciranda é Amazônica? Bom, tem ciranda também no Nordeste, aliás quem não conhece Lia de Itamaracá? A ciranda tem semente na Europa. De lá vieram as danças de roda, que no Nordeste viraram a quadrilha. Mas aí, quando as esposas dos pescadores ficavam aguardando os seus maridos na praia, às vezes, elas se reuniam em roda, cantando e dançando: fazendo ciranda. 

Mário de Andrade, em 1927, relatou ter visto ciranda pela Amazônia, dançada e cantada por crianças, mas com elementos do cotidiano da região. Já o professor de danças folclóricas José Nogueira, relata que a ciranda chegou no Amazonas no final do século 19, trazida  por um paraibano chamado Antônio Felício. No início, a festa era dançada por dez pares: Chefe, Subchefe, Oficial da Ronda, Soldado, Padre, Sacristão, Velho, Velha, Caçador e Carão. E possuía oito atos: a entrada do cordão, as encenações da Mãe Benta, Puxa Roda, Cupido, Constância, Carão, Viola Encantada e a saída do cordão.

 

O paraibano chamado Antônio Felício e o professor Isidoro Gonçalves montaram, pela primeira vez, uma ciranda na cidade de Tefé (AM), no Médio Solimões. Posteriormente, o professor José Silvestre, filho de Isidoro Gonçalves, que morava em Tefé, levou a dança para Manaus (AM), montando assim a Ciranda do Colégio Estadual Sólon de Lucena. A dança apresentou-se pela primeira vez no Festival Folclórico do Amazonas, da Bola da SUFRAMA, em 1966.

Foi a professora Perpétuo do Socorro Oliveira, que em 1980 orientada por José Silvestre, começa então na escola Nossa Senhora de Nazaré a primeira ciranda de Manacapuru.

Ciranda muda vidas

Das três agremiações existentes em Manacapuru, a ciranda Flor Matizada é representada pelas cores lilás e branco e foi a primeira a ser criada. A ciranda Tradicional veio em seguida, e é representada por uma coroa e pelas cores dourada, vermelha e branca. Já a Guerreiros Mura é representada pelas cores da bandeira do Amazonas, o vermelho, azul e branco.

Em 1997, aconteceu o primeiro Festival de Cirandas de Manacapuru, que contou com patrocínio da prefeitura. Daí virou tradição. Todo ano, em junho começam os ensaios e a montagem das alegorias e roupas, tudo de forma secreta para a ciranda rival não copiar nada.

No festival, os jurados (geralmente especialistas nos temas vindos de Manaus) vêm para julgar três grandes temas: o musical, o cênico-coreográfico e o artístico. 

Mas, a parte mais importante da ciranda é o cordão do bailado, e tem dois: o cordão de entrada e o cordão principal.

Cantador da Ciranda Tradicional no Festival. Fonte: Ciranda Tradicional

O cordão de entrada é como se fosse um prefácio sobre o tema que vai ser apresentado pela ciranda, e geralmente dança uma cirandada apenas. Já o cordão principal fica na arena todo o restante do tempo, que no total dura  até duas horas e meia.

O movimento básico do cordão é vigoroso e exige preparo físico. O corpo se movimenta sobre o repique dos pés, que conduz os cirandeiros da direita para esquerda. “Na Tradicional, as pessoas podem entrar na escolinha da Ciranda Tradicional, que ensina o bailado, o movimento dos braços e tudo que precisa. A gente é um celeiro de artistas, porque muita gente aprende a dançar aqui e vai pras cirandas rivais” , diz Bruno Guerreiro, coordenador do cordão de bailado da Tradicional.

De acordo com Bruno Guerreiro, 30, sua vida foi modificada pela ciranda de Manacapuru:

“Estou na ciranda desde os 7 anos. Comecei a dançar no meu município natal, Novo Aripuanã. Quando era adolescente eu já queria me mudar para Manacapuru pra trabalhar com ciranda. Então, peguei minhas coisas e pedi emprego no galpão da ciranda Flor Matizada, onde fui zelador e morava no galpão. De zelador cirandeiro, eu fui indo pra coreografia, e desde 2015 sou coordenador aqui, na Tradicional.”

Nós conversamos com Itaiana Castro, 30,  que é a primeira puxadora do cordão de bailado da Tradicional.

data_labe: Como é a responsabilidade de ser a primeira puxadora?

Ita: “É bastante preocupante. Antes, quando eu era só cirandeira eu entrava na arena mais leve, mas agora sou responsável por tudo dentro da arena. Se der alguma coisa errada, se precisar alongar uma música, ou atrasar, sou eu quem puxo junto com o meu par tudo o que vai acontecer. Todos os outros cirandeiros olham diretamente para o casal de puxadores, para saber o que vai acontecer e pra ter essa noção, caso alguma coisa dê errado. Tem ainda a responsabilidade de ver o alinhamento, se todos os outros estão indo direitinho”.

data_labe: Tu sempre foi da Ciranda Tradicional?

Ita: “Sempre! Minha família é toda Tradicional, até os que não eram, viraram por minha conta (rs), e nunca pensei em mudar apesar dos momentos difíceis. Toda a nossa vida girou em torno da ciranda.”

data_labe: E o que você pensa pro seu futuro na ciranda?

Ita: “Como eu já fui cirandeira, agora sou puxadora, coreógrafa, eu já alcancei tudo. Ano passado era pra eu ter parado, mas tô vendo ainda porque esse ano vai ter eleições para presidência e estou vendo como vai ficar a situação.

No ano passado, por exemplo, além de coreografar o cordão de bailado, eu também coreografei os itens, então pra sempre eu vou ter uma ligação, nunca vai acabar.

A GENTE APOSENTA AS SAPATILHAS,
MAS O CORAÇÃO NÃO TEM COMO SE APOSENTAR.”

Por uma ciranda mais diversa

Todos os integrantes do cordão de bailado usam uma indumentária bem luxuosa. As mulheres usam um vestido curto e bem franzido, que dança tanto quanto o corpo da cirandeira. Os homens usam calça, colete e chapéu, ambos calçam sapatilhas que sofrem mais do que salário mínimo no fim do mês. E todo mundo usa e abusa de pedras aplicadas, brilhos, penas, rendas e tudo o que a mente criativa humana sabe usar para se pôr em indumentária de apresentação.

A música é puxada por uma tocada, cantada pelo cantador ou cantadores, que conta a letra de uma história ou exalta a ciranda, pronto. 

Já, Rayssa Santos, 24 anos, é a atual Princesa Cirandeira da Ciranda Tradicional. Ela é a primeira item de destaque negra do Festival de Cirandas de Manacapuru. Os itens de destaque são itens obrigatórios no desfile de cada agremiação, e são três: Cirandeira Bela, Porta Cores e Princesa Cirandeira.

“Eu comecei em 2019, representando o item típico Mãe Benta, que antes disso sempre foi representado por uma senhora, mais idosa. A Tradicional inovou trazendo a versão nova da Mãe Benta. Na minha dança eu trouxe elementos da minha cultura, do meu povo, com movimentos afros e da capoeira também.”

Rayssa Santos, Princesa Cirandeira da Tradicional. Fonte: Ciranda Tradicional
Rayssa Santos, Princesa Cirandeira da Tradicional. Fonte: Ciranda Tradicional

“Nunca existiu uma item de pele negra, todas as outras eram de pele clara, olhos claros, por isso estou trazendo uma nova representatividade. Isso é muito importante para que mais pessoas da minha cor, da minha pele, saibam que podem ocupar mais espaços, porque a nossa cultura é miscigenada e ciranda é um local para todes”.

As mudanças devido à covid-19

Esse é o segundo ano que o Festival não tem caráter competitivo, e será transmitido online pela TV e pela Internet no dia 28 de Agosto, pela TV à Crítica [filial local do SBT]. Todos os envolvidos terão que fazer dois testes de PCR na semana que antecede à live, e dando tudo certo, recebem uma credencial para poder se apresentar.

Porém, a inserção das cirandas no digital aconteceu antes da pandemia. Iago Castilho, 20 anos de idade e diretor de Marketing da Ciranda Tradicional, conta que faz a cobertura digital da Ciranda desde 2018, quando trabalhava no portal de cirandas de Manacapuru. 

“A importância de colocar a ciranda nas redes digitais está na visibilidade que a gente traz pra ciranda, porque durante a pandemia a cultura ficou muito desvalorizada. Meu trabalho é garantir que as notícias sobre as cirandas não esfriem, relembrando conteúdos antigos, criando conteúdos novos para que a ciranda esteja sempre em evidência”.

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