DADOS E CRISTOFOBIA

Especialistas veem aparelhamento do canal de denúncias sobre intolerância religiosa pelo governo Bolsonaro.

Após anos de protagonismo dos adeptos de religiões de matriz africana entre as vítimas de intolerância religiosa no Brasil, dados do Disque 100 indicam que cristãos passaram a ser maioria entre os denunciantes no canal a partir do segundo semestre de 2020. Diante desse quadro, apresentamos neste artigo dados e opiniões sobre como a ascensão de fundamentalistas religiosos à política institucional pode ter contribuído para a mudança nos dados existentes até então.

A média de registros entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2022 indica 46% de fiéis da religião católica, 30% de cristãos evangélicos, 12% que apontaram não ter religião, 6% que indicaram a opção “outras”, 3% de espíritas, e 2% de afrorreligiosos. O cenário é bem diferente do período compreendido entre 2011 e o primeiro semestre de 2018, como consta na reportagem Terreiros na Mira, lançada em 2019 pela Gênero e Número e pelo data_labe. Naquela análise, cerca de 60% das denúncias sobre intolerância religiosa recebidas pelo Disque 100 eram referentes a seguidores de religiões de matriz africana.

Cristãos também eram minoria no último levantamento nacional e oficial produzido pelo governo. O Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011-2015), realizado pela Assessoria de Direitos Humanos e Diversidade Religiosa – que era ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos – foi lançado em 2017 e apontava que 33% das vítimas não tinham sua religião identificada. Em segundo lugar, com 27%, vinham cidadãos que professam as religiões de matriz africana, seguidos por evangélicos com 16% e católicos com 8%. 

A cientista social e pesquisadora Ana Paula Miranda participou do grupo consultivo do relatório e afirma que as dificuldades em trabalhar com dados sobre intolerância são antigas por conta de fatores como coleta regular com padronização, acesso à informação, atendimento padronizado e registro de ocorrência. Por conta disso, Ana Paula costuma recorrer a fontes alternativas. “Sempre trabalhei com fonte primária, muitas vezes pegando os casos nas delegacias e acompanhando esses casos no Judiciário”.

A metodologia utilizada pela pesquisadora é semelhante à escolhida na produção do Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil. Os profissionais usaram denúncias recebidas por ouvidorias e delegacias, autos policiais, reportagens da imprensa, além de entrevistas com casos emblemáticos. A partir daí, a pesquisa categorizou oito tipos de violências por motivação religiosa: psicológica, física, relativa à prática de atos religiosos, institucional, patrimonial, sexual e negligência.

Intolerância, influência e interesses

Com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, especialistas da área passaram a ver um novo comportamento do governo federal em relação à intolerância religiosa. Em 2020, o ex-presidente levou à Assembleia Geral dos Líderes Internacionais da ONU um discurso já muito frequente em sua candidatura: um apelo à promoção da liberdade religiosa por conta dos perigos da “cristofobia”, conceito que se refere a uma suposta aversão ou perseguição aos cristãos e ao cristianismo.

Na mesma linha e naquele mesmo ano, o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos publicou em seu canal no Youtube um vídeo no qual a ex-ministra Damares Alves apelava para que a população denunciasse violações de direitos por parte de agentes públicos que tivessem como justificativa a prevenção à pandemia de covid. Durante o discurso, a pastora da Igreja Batista da Lagoinha informou que o ministério estaria recebendo milhares de denúncias com este viés, feitas por pessoas que estariam sendo impedidas de professarem sua fé por conta da determinação dos governadores de fechar estabelecimento – incluindo igrejas – a fim de evitar aglomerações. A ex-gestora, senadora eleita e diplomada pelo Republicanos do Distrito Federal, ainda citou supostas agressões a pastores e líderes religiosos que se recusavam a seguir as determinações, mesmo sem apresentar evidências ou registros destes casos. 

Segundo Lívia Reis, antropóloga e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), a estratégia do governo Bolsonaro era aparelhar o Disque 100 a fim de que o canal de denúncias justificasse a intolerância contra cristãos. Referenciando o conceito de “minoritização” criado por Joanildo Burity, a especialista explica que existe uma percepção, por parte dos evangélicos, de que eles constituem uma minoria política. Assim, a demanda por mais participação desses grupos no debate público e na política institucional materializa a ideia de “batalha espiritual” e tenta validar a ideia de “cristofobia” no Brasil.  “Nos últimos anos, a narrativa persecutória foi estendida aos cristãos em geral, incluindo católicos e desigrejados, e tem como base a defesa incondicional da liberdade religiosa e da família, que supostamente a ‘esquerda’ quer destruir”. 

A pesquisa “Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020”, realizada pelo Iser, apontou tal movimentação. O estudo analisou a construção das identidades religiosas de mais de dez mil candidaturas ao Poder Legislativo em oito cidades e identificou que casos envolvendo religiosidade e de grande repercussão nos noticiários nacionais e internacionais foram difundidos de forma massiva por políticos que centralizavam suas campanhas no tema da religião, divulgando a existência da “cristofobia” em suas redes sociais. De acordo com a antropóloga, a narrativa conecta a promoção do pânico com a aversão a governos de esquerda, a exemplo das imagens amplamente divulgadas por esses políticos e lideranças religiosas de uma igreja incendiada no Chile durante os protestos sobre a nova Constituinte. “Por esta perspectiva, ataques a igrejas, a moralidades e a símbolos religiosos seriam consequência da vitória de governos de esquerda no mundo, algo que poderia ser evitado no Brasil, caso os cristãos assumissem sua responsabilidade cidadã de votar e apoiar candidaturas conservadoras”, contextualiza Livia.

Vítimas, mas em proporções diferentes

O Pastor Alonso Gonçalves, sacerdote da Igreja Batista desde 2004, rechaça a possibilidade de se praticar cristofobia no Brasil. “Temos uma indústria de moda evangélica, uma indústria fonográfica voltada para o cristianismo, então falar sobre essa fobia no Brasil é impraticável”.

Formado em Teologia e em Filosofia, o líder religioso acrescenta que o contexto histórico da América Latina e dos Estados Unidos impede que suas realidades sejam equiparadas a de países de outros continentes, onde de fato existe proibição de culto ou perseguição a religiões cristãs. Para Alonso, é muito importante que a comunidade evangélica se mobilize contra falácias e que pregue o respeito pelas outras religiões. “Os batistas surgiram no século XVII na Inglaterra com o discurso de que era necessário lutar pela liberdade religiosa porque isso garantiria a eles e a outros grupos essa liberdade. Isso precisa ser praticado”, exemplifica.

Em um país majoritariamente cristão, onde religiosidades de matriz africana e indígenas são atacadas todos os dias, a narrativa da perseguição a cristãos está posta como um projeto político que busca frear os avanços dos direitos de minorias e é beneficiado pela ausência de dados, falta de padronização na coleta e influência de interesses políticos. O novo governo ganha como herança o desafio de fortalecer os canais de denúncia, aprimorar a sistematização dos dados e investir em estratégias de combate à intolerância junto à sociedade brasileira.

Este artigo foi produzido pelo data_labe em parceria com o ISER. Publicado originalmente na Plataforma Religião e Poder e no Nexo Políticas Públicas.

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