EPIDEMIA DA FOME

Insegurança alimentar atinge população vulnerável do RJ.

reportagem
Breno Souza
Gabriele Roza

dados
Juliana Marques
Samantha Reis

arte
Giulia Santos
edição
Fred Di Giacomo

Falta de dinheiro para comida é realidade em meio ao isolamento social decretado pelo governo do Rio de Janeiro para combater Covid-19.

“Nem sei desse vírus, o que está me doendo é a fome” diz Mônica Reis, integrante do projeto Panela do Bem, que há seis anos distribui comida a moradores de rua no centro da cidade do Rio de Janeiro e hoje atende 300 pessoas. “Com essa situação os moradores de rua falaram que não estava indo ninguém [doar comida]. Falaram que semanas atrás chegaram a ficar três dias sem comer, porque além de não ter ninguém indo, não tem restaurante para pedir, não tem ninguém na rua pra pedir”.

Depois  das recomendações de evitar aglomerações em meio à pandemia de Covid-19 (que já matou mais de mil pessoas no Brasil e mais de 107 mil pessoas ao redor do mundo )  a “Panela do Bem” substituiu a tradicional sopa servida aos moradores de rua por lanches, na tentativa de tornar mais fácil a distribuição e garantir a segurança de todos. No entanto, não foi o suficiente para saciar a fome aguda dos atendidos. Então Mônica e os demais integrantes decidiram voltar a servir sopa, mas manter o distanciamento: “a gente cria uma relação com as pessoas que são atendidas, sempre nos preocupamos em levar mais do que só comida. Agora a gente está indo lá pura e simplesmente pra levar comida”. 

Distribuição de comida aos moradores de rua no centro do Rio.

Viralização da fome 

“Desde o encerramento das atividades do lixão a situação vem piorando porque muita gente sobrevivia do que catava no lixão. Aqui na minha comunidade, as pessoas já passam bastante necessidade, independente dessa pandemia. Agora piorou porque a maioria das pessoas está em casa, sem trabalhar ou desempregadas”, diz Roseli da Silva, 39 anos, que mora próximo ao antigo lixão de Gramacho, em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense do Rio. Vivem com ela seus três filhos e o esposo.
    A família de Roseli se mantém apenas com o salário mínimo de seu marido, que está com o emprego em risco graças à pandemia, e do dinheiro do Bolsa Família. O aumento do preço no mercado preocupa Roseli: “Tenho visto o aumento nos preços principalmente nos alimentos mais grossos, como arroz, feijão, óleo e açúcar. Além de comida, o pouco dinheiro que entra é utilizado para comprar água, algumas pessoas até conseguem pegar [de poço], mas aqui estou comprando água até para higienizar as mãos. É 40 reais pra encher 1000 litros”.

Roseli tem razão. O preço da cesta básica aumentou em 15 das 17 capitais que participaram da Pesquisa do DIEESE – Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos realizada no período de 1 a 18 de março de 2020. As altas mais expressivas ocorreram em Campo Grande (6,54%), Rio de Janeiro (5,56%) e Vitória (5,16%). A capital com a cesta mais cara foi o Rio de Janeiro (R$ 533,65), seguida de São Paulo (518,50) e Florianópolis (R$ 517,13). O DIEESE estima que, em março de 2020, o salário mínimo deveria ser 4,29 vezes maior do que os atuais R$ 1.045,00. 

Assim como Roseli, Felipe Lima, 30 anos, se queixa da alta nos preços: “esses mercados grandes têm condições de ajudar mais a população, de manter o preço. A gente está economizando no que pode, ainda estamos fazendo as refeições, graças a Deus, mas eu me inscrevi para cesta da Redes da Maré.  porque provavelmente o tempo em que ela vai demorar pra chegar é o tempo que as coisas aqui vão acabar.”

Ação da Redes da Maré na distribuição de comidas aos moradores de rua e pessoas em situação precária de moradia na Maré. Créditos: Redes da Maré

Felipe Lima, que mora na comunidade Nova Holanda, no Complexo da Maré, está   afastado do trabalho por falta de serviço: “minha esposa trabalha dando aula de balé em escolas pela comunidade, só que as aulas pararam. Se ela não trabalha, não recebe. A alternativa que a gente teve foi fazer batata recheada pra vender”. 

Não é só Felipe que enfrenta problemas relacionados à insegurança alimentar por precisar se afastar do trabalho durante a pandemia. Dados da pesquisa Data Favela/Instituto Locomotiva mostram que 86% dos moradores de favelas no Brasil, se precisassem ficar em casa sem renda, teriam dificuldade para comprar comida. Os mesmos dados mostram que os moradores de favela não têm reservas financeiras para emergências, já que 72% deles perderiam seu padrão de vida imediatamente se ficassem sem a renda atual. Isso porque, de acordo com a pesquisa, apenas 19% dos moradores  possui carteira assinada.

A Pesquisa Nacional por amostra de Domicílios Contínua 2020 indica que no trimestre de dezembro de 2019 a fevereiro de 2020, havia aproximadamente 12,3 milhões de pessoas desempregadas no Brasil. O IBRE (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas) indica que a situação pode ficar pior nos próximos três meses. Segundo a estimativa, pode haver cinco milhões de desempregados no trimestre que vai de março a maio por conta da crise do coronavírus. Isso faria a taxa de desemprego pular de 11.6% para 16.1%, atingindo recorde nacional.

O mínimo que você precisa ter para não morrer de fome

Num país onde, segundo o Ministério da Saúde, 15 pessoas morrem de desnutrição por dia, a necessidade de manter a população mais pobre presa em casa, sem poder trabalhar, acendeu o sinal vermelho para o risco  de que a fome afetasse milhões de brasileiros. 

Diante do alarme, o governo federal adotou a Renda Básica Emergencial que começou a ser paga na última quinta (9). A Renda Básica Emergencial prevê um pagamento por três meses de 600 reais para trabalhadores informais (autônomos e desempregados) inscritos no Cadastro Único, contribuintes individuais do INSS e microempreendedores individuais (MEI). O benefício de 600 reais será concedido para até duas pessoas numa mesma residência. Mães solo têm direito a dois benefícios cumulativos, totalizando 1.200 reais. 

Mas quem tem fome tem pressa. No estado do Rio de Janeiro, o isolamento social já está em vigor desde o dia 17 de março. Como os trabalhadores impedidos de ir às ruas têm se virado nesse meio tempo? Uma iniciativa para conter o avanço da fome de maneira imediata são os restaurantes populares, espaços que garantem refeições a preço baixo. Infelizmente, devido a dívidas do estado, cinco deles foram fechados no município do Rio em 2019.

‘‘Tínhamos 17 restaurantes no estado inteiro, oito deles no Rio de Janeiro. Hoje a gente tem de três a cinco restaurantes funcionando, muito pouco. É importantíssimo reativar esses restaures e colocá-los para funcionar a qualquer custo.’’, explica Taís Lopes, membra do Conselho de Segurança Alimentar do Estado do Rio (CONSEA-RIO) e professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro da UFRJ.

No Complexo de favelas da Penha, o grupo Voz das Comunidades tem realizado diariamente doações às famílias mais vulneráveis. Neila Marinho é jornalista e assessora do jornal do grupo e relata o que é unânime em boa parte das periferias brasileiras: a fome não é novidade. “A fome já existe dentro das comunidades sem a pandemia”, diz Taís,  “com o atual cenário ela só tende a piorar. São muitas famílias vivendo em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade.” Para ela, a união de grupos é uma forma de vencer a fome: “A campanha ‘Pandemia com empatia’ surgiu da necessidade de ajudar a comunidade e teve a adesão de outros coletivos da comunidade como o Coletivo Papo Reto e Mulheres em Ação, que uniram forças para ajudarem a favela no combate ao Covid-19”.

Equipe do projeto pandemia com empatia, que reúne diversas pessoas e iniciativas no para ajudar a população mais vulnerável no Alemão.
Crédito: Voz das comunidades

Na Maré, a organização Redes da Maré trabalha para conter o avanço da fome no território. A ONG administra o Espaço Normal, local de acolhimento para alimentação, higiene e convívio para usuários de drogas que estão em situação de rua ou que vivem em  domicílios precários. “A alimentação entendemos que é o básico, o princípio mínimo da vida. As pessoas vão viver e estão vivendo uma perda econômica brutal. Nós [Redes da Maré] nos dividimos principalmente em duas entregas, as entregas de cesta básica nos domicílios e as entregas das quentinhas para a população em situação de rua e para as pessoas que estão em domicílios, mas que não têm condições de fazer comida dentro das suas casas’’, explica Luna Arouca, coordenadora do Espaço Normal, ‘‘quando circulamos na rua muitas pessoas nos abordam para falar que estão passando necessidade, que elas estão precisando”.

Para a professora Taís Lopes, outra medida que o governo estadual precisa tomar é acordar com as distribuidoras de água e luz para que não façam cortes neste período. ‘‘Não se trata só de comida, se trata de você ter água para cozinhar, de ter luz, de ter gás. A gente precisa garantir que as pessoas estejam em casa e elas só estarão em casa se elas tiverem o que comer.’’

Esta reportagem faz parte da parceria entre o data_labe, a Gênero e Número, a Énois e a Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (COVID-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias


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