Reportagem: Eloah Mota e Edilana Damasceno Arte: Giulia Santos e Nicolas Noel Edição: Fred DiGiacomo
“Nós somos construídos com base nessa falsa democracia racial, nós estamos errando em tudo mesmo”. É ponderando erros e acertos que há 15 anos Priscila Pâmela dedica sua vida à advocacia criminal e ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa – o IDDD- que recentemente lançou a campanha #PorQueEu em parceria com o Data_Labe. Hoje na posição de diretora executiva da instituição e desde sempre na posição de mulher negra na sociedade, Priscila combate um sistema que afeta ela e seus semelhantes.
Ao se referir à libertação de seu povo, Pâmela não acredita em abolição inconclusa: “é uma falsa abolição mesmo”. E é atrás da liberdade que a advogada preside a Comissão de Polícia Criminal e Penitenciária da OAB em São Paulo, é mestranda em direitos humanos pela USP, pós-graduada em direito penal econômico pela GNV e tem especialização em raça, mulheres e direitos humanos também pela USP.
Em entrevista para o Data_Labe, Priscila Pâmela fala sobre racismo nas abordagens policiais, racismo institucional e explica o que preciso ser feito para modificar a situação do negro do Brasil.
Por que a forma como as abordagens policiais vêm sendo realizadas hoje no Brasil é um problema?
Alguns são os problemas que envolvem as abordagens policiais. Um deles é a falta de procedimento, é a falta de protocolos oficiais que conduzam as motivações da abordagem. Então, a nossa abordagem acaba sendo muito subjetiva. Nós não temos critérios objetivos ali pautados em determinações, em protocolos, para realização da abordagem.Na medida em que você permite que o subjetivismo da pessoa a abordar seja o fator principal para que as abordagens aconteçam, ele vem carregado de diversos preconceitos, de diversas discriminações e tudo que aquela pessoa têm para si como um valor.
Por que esse problema se torna muito grave no Brasil? Porque para além disso tudo dessa falta de de protocolos e de requisitos objetivos nós temos a questão do racismo estrutural. É importante que a gente faça um contexto para poder chegar nisso. Nós, o povo negro viemos sendo coisificado desde a muito. Então tivemos a igreja, a ciência que acabou por reduzir a pessoa negra a um patamar de inferioridade e acabou também por fazer com que retirassem dessas pessoas a própria humanidade. Assim, se tornaram coisas que possibilitaram a escravização durante todo aquele período absurdo.
E no pós-abolição, que daí já não falo nem que é uma abolição inconclusa, é uma falsa abolição mesmo, criam-se normas que criminalizam especificamente pessoas recém libertadas. Criminalizam-se condutas de vadiagem, evidentemente voltadas para semi-libertas que não tinham possibilidades de ingresso na escola, porque foram leis anteriores que proibiram o acesso de pessoas negras à escola. As pessoas estavam saindo e elas não tinham trabalho. Então, os negros ficam jogados nas ruas às margens e muitos eram enquadrados nessa lei da vadiagem.
Capoeira é um jogo típico, próprio de pessoas que vieram da África e aí também se criminaliza a capoeira. Ai, além de tornar a pessoa negra uma “coisa”, tendo retirado a sua humanidade, colocado ela em um patamar de inferioridade e criado primeiro leis que não possibilitam a eles acessos e condutas que criminalizam suas ações, foi-se criado um estereótipo vinculando a pessoa negra à criminalidade e a marginalidade. E isso foi estimulado durante muitos anos pela mídia, pela publicidade, pelos filmes, pelas novelas e tudo o que nós vimos esse estereótipo que relaciona as pessoas negras à criminalidade até hoje e isso constrói o imaginário social.
Então, esse policial que vai realizar essa abordagem está inserido nesse contexto. Além de que, a Polícia Militar tem um treinamento de guerra, então, se estabelece que eles precisam combater o inimigo e quem é? É esse marginal que acaba tendo cor, que acaba tendo uma região periférica específica, que acaba sendo pobre. Então, nós temos alvos muito específicos nessas abordagens, justamente, em razão dessa nossa estrutura, que é muito racista. E a nossa sociedade, que é totalmente racializada, impõe às pessoas negras o maior índice de abordagens tendo nessas pessoas inimigas e não sujeito de direito, já que eles são coisas sem humanidade.
Já existe um protocolo policial a ser seguido ou já existiu?
Nós não temos um protocolo efetivo que crie critérios objetivos. O policial, na grande maioria das vezes, vai dizer que a pessoa estava em atitude suspeita desde porque ela estava nervosa até pelo fato de ela ter corrido. Então, qualquer coisa que ele quiser dizer que é atitude suspeita, vai ser aceita. E é aí que está o nosso grande problema, isso, é um problema de outros grandes países também. Mas aqui eu acho que o problema acaba sendo potencializado porque nós temos para além da falta de requisitos objetivos, a questão racial muito em alta. Uma coisa aliada a outra, torna isso uma violação de direitos humanos absurda aqui. nais.
Aonde o setor público vem errando perante a questão da discriminação racial no sistema judiciário?
Não é só a polícia e é importante que a gente deixe claro que não são só os maus policiais que praticam abordagem racistas. Porque muitos inclusive sequer entendem que a abordagem tem um cunho racial, né? Porque então, quando ele realiza essa abordagem a partir de um estereótipo criado, ele está seguindo o que ele foi ensinado, que foi produzido durante toda uma vida. E, assim como a polícia, outras instituições como o Ministério Público e o judiciário, também tem esses mesmos estereótipos fincados no seu imaginário social.
Nós começamos ali na Polícia Militar, seguimos pra Polícia Civil que chancela abordagem ilegalIsso segue por uma audiência de custódia, a pessoa é presa no dia seguinte, o juiz está ali, promotor está ali e promotor faz o quê? “Olha, foi reconhecido pela vítima, requeira que ia conversar em prisão preventiva”. O juiz vai olhar o réu e pensar “ah, olha o perfil?” E é isso, a pessoa pode nem falar, mas já está construindo um imaginário de que aquele perfil é o perfil de “bandido”
Em quantas audiências, em quantos momentos as pessoas que estão sendo presas não relatam tortura, e nada é feito? Relatamque foram submetidas a uma confissão, a assinar um documento, sem que tenham lido, sem que tenham concordado, mediante a ameaça ou qualquer outra acuação física e, inclusive, narram isso pro Ministério Público.O número de procedimentos que se vão para a frente, nas ouvidorias das polícias, que viram uma denúncia, no Ministério Público, é ínfimo e vergonhoso. Então, o Ministério Público é um grande aliado nessa pauta da polícia.E após a campanha #PorqueEu o que o IDD pretende fazer? Que políticas públicas podem ser realizadas?
Primeira coisa é a produção de dados, porque a ausência de dados inviabiliza qualquer política pública séria e comprometida. A questão de não ter censo é algo absurdo e mostra o quanto nós não estamos preocupados com os dados que levem a políticas públicas de fato responsáveis. Então, essa ausência é o nosso calcanhar de Aquiles, nós não temos de onde partir. A partir da posse desses dados, aí sim, se inicia um novo momento, que é a elaboração deste protocolo. É convidar as instituições que participam das políticas prisionais, da política criminapara que, de forma responsável, a gente consiga construir um protocolo com quesitos objetivos que conduzam a uma abordagem policial responsável.A abordagem, por si só, é uma violência muito grande, sentir-se abordado, ser abordado por um agente de segurança pública já é em si uma violência. Então para que ela possa ser executada, no mínimo tem que haver indícios objetivos que levem à autorização desse ato de violência. O Estado detém um poder imenso de perseguir criminalmente uma pessoa e para isso, ele precisa observar critérios legais.