INDÍGENAS NO PODER?

Em um ano de recorde de candidaturas por diferentes partidos, indígenas esbarram em dificuldades para realizar campanhas e ter sucesso nas urnas.

“Em Brasília tem indígenas?”. Airy Gavião já perdeu as contas de quantas vezes ouviu tal questionamento. No Distrito Federal desde 1972, quando migrou do Pará para a capital do país, a artesã faz parte dos mais de nove mil parentes (forma como alguns indígenas se referem uns aos outros) que residem e resistem na região. Movida por este incômodo, mobiliza a primeira candidatura coletiva de mulheres indígenas do Distrito Federal, junto com Murian Pataxó e Shirlene Tukano, que concorre ao cargo de deputada distrital pelo Psol. “Nós todos já nascemos políticos, já lutamos há muito tempo. A princípio eu não queria me candidatar, mas compreendi que não era sobre mim, era por todos os parentes”, afirma.

A candidatura do coletivo faz parte de um momento de crescimento significativo de indígenas nas urnas. Nas eleições de 2022, a quantidade de possíveis representantes superou as de 2018, com mais de 180 concorrentes para todos os cargos em disputa, com exceção da presidência da república. O aumento tem sido uma tendência nos últimos processos eleitorais. Em 2020, a participação indígena bateu recorde com 1917 candidaturas, contra 1175 do pleito de 2016.

A expansão é concomitante a episódios de resistência dos povos originários contra violências e retrocessos legais. Em 2021, a segunda edição da Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, acompanhou o julgamento do Marco Temporal, uma tese que defende que somente as áreas ocupadas ou reivindicadas antes da Constituição Federal sejam consideradas território indígena. A discussão da proposta está parada no Supremo Tribunal Federal (STF) desde junho deste ano, quando foi retirada de pauta. 

Primeiro mandato coletivo do Distrito Federal reúne três povos diferentes: Gavião, Pataxó e Tukano.

Para as integrantes do coletivo, a disputa por direitos por meio da política institucional tem sido uma estratégia não apenas para garantir a demarcação das terras, mas também para enfrentar as desigualdades sociais às quais indígenas que vivem em áreas urbanas são submetidos. 

“O indígena que vive na cidade tem dificuldade em acessar educação, saúde, moradia. Todo serviço que você vai procurar mandam perguntar na Funai. Nossa luta é muito grande, pois somos invísiveis”, conta Murian Pataxó, artesã oriunda do Sul da Bahia.

Dinheiro traz elegibilidade

Embora as mulheres tenham sido protagonistas nos últimos atos realizados a favor da vida indígena, elas são minoria nas disputas ao Legislativo e ao Executivo. Segundo análise do data_labe com base nos dados do TSE referentes às eleições de 2020, 67% das candidaturas indígenas são masculinas. Os homens ainda têm 3,7 mais chance de serem eleitos do que as mulheres. 

Outro fator relevante para compreender a elegibilidade indígena é o acesso aos recursos. 75% das candidaturas indígenas de 2020 realizaram suas campanhas com menos de R$2512. O baixo orçamento é um problema, visto que a análise aponta uma relação direta entre o sucesso nas urnas e os recursos disponíveis para a campanha. Para compreender tais fatores, dividimos todas as candidaturas indígenas de 2020 em cinco categorias referentes aos valores recebidos: 418 pessoas se candidataram com até R$10; 66 candidaturas receberam de R$10,10 a R$123,60; em seguida, temos 475 candidaturas cujo orçamento variou entre R$124 e R$830; outras 479 candidaturas puderam investir R$839 a R$2512 nas campanhas; e, por fim, 479 candidaturas tiveram mais de R$2512 para utilizar na campanha. Quem conseguiu acessar mais recurso financeiro teve 19,4 mais chance de vencer a eleição, enquanto o grupo que tinha apenas até R$ 123,60 ficou com chances abaixo de um.

A dificuldade de acessar recursos, sobretudo os provenientes do fundo eleitoral, é um problema histórico no Brasil, que tem sido enfrentado por políticas de ação afirmativa que assegurem uma representação mais proporcional de diferentes setores da população nos cargos de decisão política. Nesse sentido, 2020 também foi um ano histórico, a começar pelo fato de que ocorreram as primeiras eleições nas quais cada partido teve que cumprir a cota de 30% de candidaturas reservadas às mulheres. Antes da Emenda 97/2017, a cota acabava diluída entre vários partidos por conta das coligações feitas pelas legendas. Naquele mesmo ano entrou em vigor a cota racial destinada a pessoas negras, que instituiu que o número de candidaturas negras em cada partido seja equivalente à proporção de pretos e pardos na população da unidade federativa, além de assegurar recursos do fundo eleitoral e do fundo partidário e o tempo de propaganda gratuita no rádio e na TV às candidatas negras.

Sem cotas exclusivas, indígenas ficam reféns das decisões dos partidos

De fora do cálculo, visto que a cota racial não inclui a população indígena, o mandato coletivo de Airy, Muriã e Shirlene, nutriu esperanças numa resolução do Psol, publicada em ata em agosto, na qual a legenda se comprometia a priorizar mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+, pessoas com deficiência e indígenas na distribuição do fundo eleitoral. No entanto, a promessa ficou só no papel. Na prática, o coletivo recebeu R$18 mil – menos que o esperado – e não ganhou tempo para a propaganda eleitoral na TV. 

“No geral, quem ganha mais são aqueles que o partido considera que têm mais visibilidade, que têm muitos seguidores nas redes sociais ou que já se candidataram antes. Mas a gente milita na legenda há anos! Eu mesmo já participei de um mandato coletivo que recebeu com 6040 votos em 2018, mas, infelizmente, o partido não reconheceu isso”, conta Airy, acrescentando que o recurso do partido foi liberado somente na última semana de agosto, 15 dias depois do início da campanha eleitoral. 

Segundo as candidatas, que publicaram nota de repúdio ao ocorrido, o partido alegou que a ordem de prioridade levou em conta as cotas estabelecidas por lei eleitoral. “Muitas vezes, o que nós vemos é que só somos importantes para as fotos, com os nossos cocares, nossas vestimentas e nossos cantos, mas não para termos nossa luta de fato levada a sério”. Questionado para esta reportagem, o diretório do Psol/DF não respondeu às mensagens enviadas. Apesar da decisão contraditória no Distrito Federal, a legenda apresentou 25 candidaturas indígenas em 2022, ficando em primeiro lugar entre os partidos.

Legendas têm buscado mais diversidade
de candidaturas

A análise das candidaturas indígenas de 2020 mostra que PT, PP, MDB, PSD, PDT, PSDB e DEM lançaram pelo menos 100 nomes cada um, mostrando a presença de concorrentes em diferentes posicionamentos ideológicos. Mas como conciliar a defesa das pautas indígenas em partidos que se posicionam contra esta população? Este é o desafio da Cacica Bia Kokama, candidata à deputada estadual pelo PSC do Amazonas. 

“Vou ser sincera: fui muito criticada [pela filiação ao PSC], mas eu vejo como uma oportunidade de realizar os meus sonhos e o sonho dos meus parentes”, afirma Bia, que é filha da primeira mulher a se tornar Cacica – pessoa responsável pela tribo – na década de 1990, e que tem exercido a mesma liderança há dez anos.

A Cacica recebeu críticas de outros parentes por ter escolhido o PSC, mas argumenta que o partido tem aberto espaço para lideranças indígenas, como a criação da ala indígena.

As críticas têm embasamento. O Partido Social Cristão costuma se posicionar de forma contrária a pautas importantes para os povos originários. Em 2020, por exemplo, dez dos doze deputados federais da legenda votaram a favor do PL 191/2020, que permite a prática de mineração em terras indígenas. O partido também esteve envolvido nas negociações de Michel Temer por apoio no Congresso Nacional. Em troca de votos favoráveis às pautas do presidente, o PSC receberia a presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai). A Cacica, por outro lado, vê na legenda um espaço de oportunidades. Ela é conselheira fiscal da recém-criada ala índigena do PSC, que disputa as eleições de 2022 com sete nomes indígenas. “A legenda foi a única a se mostrar disposta a estruturar um espaço para se pensar os direitos dos povos originários”, avalia.  

Embora a Cacica enxergue abertura para as lideranças indígenas no PSC, o acesso a recursos financeiros ainda é um entrave. A candidata explica que os R$30 mil recebidos não cobrem os gastos necessários para uma candidatura regional. “Não paga o custo de visitar boa parte das calhas [canal principal por onde escoam as águas de um rio] do Amazonas, nem para estar em São Paulo de Olivença no Alto Solimões, de onde eu sou”, afirma. Para os conterrâneos, a Cacica conseguiu apenas enviar santinhos. O Amazonas foi o estado recordista de candidaturas indígenas em 2020, seguido por Mato Grosso do Sul, Roraima, Bahia, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Mato Grosso. Em 2022, acabou ultrapassado por Roraima, que totalizou 32 candidaturas contra 12 do Amazonas.

Seja no Norte ou no Centro-Oeste, em partidos de direita ou de esquerda, os desejos reconhecer a existência de indígenas em áreas urbanas. “A gente nunca vai deixar de ser indígena por viver na cidade. Hoje muitos dos meus parentes passam necessidade por não terem onde plantar. O que eu quero é deixar a gente com um pedaço de terra para construir um futuro: casa, escola e terra para todos”, defende a Cacica. 

As mulheres da Mandata Coletiva acrescentam a urgência de ter políticas de ação afirmativa exclusivas para a população indígena. Para elas, o objetivo precisa ser não apenas aumentar o número de candidaturas, mas estruturar possibilidades para que disputem as eleições com qualidade. “Na prática, a gente disputou recurso com pessoas brancas. Antigamente a gente era considerado pardo pelo IBGE, e esse ano nós fomos meio que consideradas como brancas pelos partidos. Os negros já têm cotas, e a gente segue sem nenhuma medida”, critica.

Acesse a análise das candidaturas indígenas completa no nosso GitHub.

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