Reportagem: Edilana Damasceno e Vinicius Lopes
Edição: Elena Wesley
Arte: Nícolas Noel
Gráfico: Ju Messias
Foto: Gabi Lino
Faz cerca de um mês que os representantes do Censo do IBGE estão nas ruas, mas o que já parece comum no dia a dia dos mareenses era muito diferente há pouco mais de 70 anos. Foi somente em 1949 que as favelas foram incluídas nos processos de pesquisa do governo. O Censo daquele ano tinha objetivos bem diferentes do que está sendo produzido em 2022. naquela época, o objetivo do governo era comprovar com dados que as favelas representavam um problema social que deveria ser solucionado com a remoção das famílias. As informações coletadas, no entanto, indicaram que as favelas eram espaços vivos, com força cultural e ocupadas por pessoas que faziam a cidade funcionar. Assim, a partir da edição seguinte, houve mais abertura para a participação popular, a fim de que os dados coletados colaborassem para a criação de políticas públicas que atendessem às necessidades da população.
O doutor em Ciência Política, João Roberto Lopes Pinto, define como política pública “a ação do governo para corresponder ao que prevê a lei e o direito”. Isso significa que a Constituição Brasileira garante que todo mundo tem direito à educação, ao transporte, a um meio ambiente saudável, entre outros. “Falar em algo que é público é pensar num bem comum a todos, por isso é impossível pensar nessas políticas sem que se conheça a realidade da população”.
Desde 1936, quando foi criado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa (IBGE) é o principal órgão responsável por identificar esta realidade. A partir de pesquisas mais periódicas, como a PNAD Contínua, ou do censo populacional, realizado a cada dez anos, o IBGE busca incidir no interesse econômico e social, mão de obra, empregabilidade e principalmente políticas públicas.
Para além dos dados oficiais
Apesar da importância dessas pesquisas, o que especialistas como João Roberto argumentam é que nem sempre os levantamentos tradicionais dão conta de retratar a complexidade de territórios como as favelas, a começar pela forma como o IBGE nomeia estes espaços – aglomerados subnormais. Recebem esta categorização as áreas de ocupação irregular. “Se esses espaços são considerados aglomerados subnormais, significa que existe o normal, ou seja, a cidade é considerada normal e a favela anormal”, acrescenta João Roberto.
Ainda que as metodologias do IBGE sejam testadas em todo o país e deem conta de representar o todo em alguns aspectos, outras singularidades ficam de fora e acabam sendo subrepresentadas. É o que acontece na Maré em relação ao saneamento básico, por exemplo. O Censo de 2010 do IBGE afirma que somente 25% dos domicílios da Maré teriam esgoto a céu aberto em seu entorno. Contudo, basta caminhar pelo conjunto de favelas para perceber que o esgoto a céu aberto é um problema grave em diferentes localidades. “No final de semana é só passar na Bittencourt Sampaio, na Rua Sargento Silva Nunes, no Parque Maré, naqueles ‘miolos’ ali, que você acha muito a esgoto a céu aberto. Tem morador que quer fazer um churrasco, quer ficar na porta batendo papo e não fica por causa do cheiro do esgoto e do entulho”, exemplifica Gilmar Gomes, o Magá, que preside a Associação de Moradores da favela Rubens Vaz.
A favela como protagonista na produção de dados
É pelo dia a dia relatado pelos moradores que o Cocôzap mapeia os problemas de esgoto, lixo e água na Maré, com o objetivo de retratar as lacunas deixadas pelos órgãos oficiais de pesquisa. O relatório “Cocôzap: Sistematizando dados e formulando políticas”, publicado em agosto deste ano pelo data_labe em parceria com a Fundação Heinrich Böll, aponta que foram mapeadas 120 queixas de moradores sobre esgoto somente entre janeiro e abril de 2021, inclusive nas áreas onde o IBGE não havia identificado a existência do problema. Dessas 120 reclamações, 70 são referentes a esgoto a céu aberto.
Para Gilberto Vieira, diretor do data_labe e pesquisador de urbanismo e tecnologias, produzir dados sobre um problema é uma estratégia para mostrar ao poder público a realidade da população, conceito compreendido por “geração cidadã de dados”. “Se o que entendemos por cidadania é um conceito desgastado e em crise, então precisamos encontrar um lugar novo que garanta experiências comuns de ação e transformação social. Nesse sentido, a geração cidadã de dados se propõe a engajar a sociedade civil para usar suas próprias ferramentas a fim de gerar informação e conhecimento”, explica.
No pioneirismo da geração cidadã de dados dentro das favelas nasceu o Censo Maré. Fruto de uma parceria entre a Redes da Maré e o Observatório de Favelas, quase 129 mil mareenses foram entrevistados. A partir delas, foram produzidos o Censo Populacional da Maré (2019), o Guia de Ruas da Maré (2014) e o Censo de Empreendimento Maré (2014). Nascido e criado no Parque União, Everton Pereira atuou como coordenador executivo do Censo e conta como o censo serviu de estratégia das organizações para reivindicar políticas públicas. Com os dados os argumentos por melhorias se tornavam mais fortes.
Após mapear mais três mil empreendedores na Maré – a maioria sem regularização – vieram iniciativas voltadas à estabilidade financeira e profissional dos profissionais, como a criação de um serviço de atendimento do SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). No campo da educação, o censo identificou um quadro preocupante de evasão escolar: como muitas crianças estudavam fora da Maré, a necessidade de deslocamento fazia com que deixassem de ir à escola. “A partir desses dados a gente conseguiu dialogar com a Secretaria Municipal de Educação em uma condição muito melhor de incidir politicamente, porque os dados comprovavam o que a gente já dizia: que, para a mãe e o pai que precisam trabalhar, fica difícil colocar uma criança de oito ou nove anos para estudar longe de casa. Assim, vieram mais escolas. Essas mudanças acabaram inclusive gerando um mercado de transporte escolar dentro da Maré”, lembra Everton.
A Maré é exemplo de como a participação social é importante para gerar transformação e segue atuante nesse sentido, com todas as 16 favelas do conjunto tendo uma associação de moradores. A gente nada no esgoto e se a gente não tiver um planejamento não vai sair disso para dar uma qualidade na vida do morador. Tem que vir, sentar e conversar com a gente. A associação está aqui para isso”, reforça Magá.
Essa reportagem é resultado de parceria do Maré de Notícias com o data_labe e foi produzida pelo CocôZap, um projeto de mapeamento, incidência e participação cidadã sobre saneamento básico nas favelas.