MARÉ PELO RALO

A precariedade do saneamento básico é a principal causa da ineficiência da recuperação dos Canais do Fundão e do Cunha; moradores sofrem impactos.

Reportagem e fotos: Vinícius Lopes

Apuração: Ruth Osório
Edição: Fred Di Giacomo

Arte: Nícolas Noel

As obras de despoluição do Canal do Fundão e do Canal do Cunha são ligadas ao Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), que teve início em 1994, e tinha como objetivo recuperar a qualidade das águas da Baía e de seus afluentes através da melhora nos serviços de saneamento básico. 

Entre os anos de 2009 e 2011 foram executadas as obras de revitalização destes canais que circundam o Complexo da Maré. Tais obras cumpriram com o objetivo de retirar de dentro dos canais cerca de 3,2 milhões de metros cúbicos de resíduos – inclusive resíduos altamente tóxicos – assim como a dragagem dos rios do entorno e a reurbanização das imediações. A intervenção trouxe de volta os manguezais que costumavam existir nas margens e faziam parte da memória de muitos moradores. 

Alegria de Canal pobre dura pouco

Após aproximadamente 3 bilhões de reais de investimentos, a falta de manutenção fez com que, dois anos depois, a situação dos canais já estivesse precária novamente, como apontado em 2016 pelo Plano de Recuperação Ambiental da Baía de Guanabara. Os moradores do entorno dos canais do Cunha e do Fundão, tampouco notaram a eficácia das obras, na verdade, só veem os problemas se agravarem.

Nascido e criado no Conjunto Esperança, Beto, 37, trabalha atualmente em uma escola na comunidade e se recorda da infância nos entornos do Canal do Cunha: “Como meu pai é do interior do Maranhão, sempre gostou de ver a natureza, então quando a gente era pequeno, a gente gostava de vir pra cá pra trás [próximo ao Canal do Cunha], e tinha muita fauna, passarinhos… Hoje em dia é bem impossível. Essa foi uma mudança radical que a gente viu”. 

Nos anos 1980, época citada por Beto, o Canal do Cunha já era poluído. É natural que os canais e a baía de Guanabara não permanecessem límpidos com o passar do tempo, visto que já existia um significativo processo de urbanização no Rio de Janeiro, com uma crescente migração e adensamento urbano. 

Reinaldo Bozelli, professor e especialista em águas da UFRJ, afirma que a poluição dos canais deveria estar, ao menos, num nível controlado, pois assim estas águas poderiam ser utilizadas para o uso humano após tratamento.

O principal fator que contribui para o atual estado do Canal do Fundão e do Canal do Cunha é o lançamento de esgoto in natura direto nos canais, que posteriormente deságua na Baía de Guanabara. Segundo o Censo 2010, ainda que cerca de 96% das casas do Complexo da Maré tenham ligação de coleta de esgoto, nem todo o esgoto coletado é direcionado às estações de tratamento. Por conta disso, boa parte do esgoto coletado é lançado nos valões dentro das favelas, e assim é direcionado aos canais no entorno das 16 comunidades da Maré.

A culpa é dos portugueses?

Bozelli aponta que a prática de coletar esgoto e lançar em rios distantes é histórica: os portugueses já faziam isso na época colonial. Mas no caso da Maré, o esgoto é coletado e lançado em rios que estão muito próximos às residências, colocando alguns moradores em maior risco. A poluição excessiva e o esgoto a céu aberto potencializam a incidência de doenças de veiculação hídrica e de insetos vetores de doenças, como o caso do Aedes Aegypti, mosquito vetor da dengue, zika e chikungunya.

Contudo, essa não deveria ser a realidade da Maré. Segundo a unidade executora do Programa de Saneamento Ambiental (UEPSAM), há um projeto aprovado de construção de uma estação de tratamento de esgoto que contemplaria toda a Maré – a ETE Alegria. A construção e o funcionamento pleno da ETE Alegria beneficiariam 1,5 milhão de pessoas que vivem no entorno da estação, e seriam cruciais para o funcionamento do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara. Esse seria o primeiro passo para a despoluição efetiva dos canais, como aponta Bozelli: 

“[No Canal do Cunha] tinham barcos recolhendo lixos, e algumas ecobarreiras. Isso tudo não resolve poluição nenhuma. Na verdade, o lixo e o esgoto não têm que chegar no corpo d’água”.

 

O descaso que acostuma

No Conjunto Esperança, uma das comunidades que faz margem com o Canal do Cunha, é possível ver de perto as condições do rio. Alice, 82, chegou na Maré na época das palafitas e está no Conjunto Esperança desde a inauguração, em 1982. A moradora não vê muitas melhorias nos últimos anos: “Desde que eu cheguei já tinha o valão que divide a Vila do João e o Conjunto, e que escoa pro Canal do Cunha. No início nem a ponte tinha, então a gente atravessava por cima de umas madeiras dentro do próprio valão. E sempre foi assim: muito sujo, a gente via de tudo, esgoto e muito lixo. Só fez piorar”.

Um dos sintomas da perpetuação desses problemas é a naturalização por parte dos moradores, que passam a achar normais a poluição do canal e seu entorno. Há várias casas, comércios, restaurantes e até espaços educacionais no entorno dos canais que são diretamente afetados pela poluição.

“De vez em quando o cheiro sobe, mas como nós somos moradores, a gente não nota tanto. Se você passa duas semanas fora do Conjunto Esperança, quando chega na Avenida Brasil, você sente a diferença no odor […] Se tornou tão normal pra gente que a gente não nota”, diz Beto.

Margem do Canal do Fundão visto da Nova Holanda | Foto: Vinícius Lopes

Legado das Olimpíadas?

Uma das promessas feitas para a realização dos jogos olímpicos no Rio de Janeiro em 2016 foi a entrega de uma Baía de Guanabara limpa aos cariocas. Por conta disso, foram gastos 7 bilhões de reais com projetos de revitalização dentro do Programa de Saneamento dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (PSAM), que incluíam ecobarreiras, dragagens e barcos despoluidores. Contudo, dados do Instituto Estadual do Meio Ambiente (INEA) indicam que a situação da Baía tem piorado com o passar dos anos.

Em 2020 houve a formulação do Novo Marco do Saneamento, que trazia entre as metas principais a garantia da universalização do tratamento de esgoto até 2030. Para que essa universalização seja alcançada, é necessário um investimento de cerca de 500 bilhões de reais, mas segundo Bozelli, mesmo com essa meta alcançada, ainda seriam necessários 25 bilhões de reais somente para a despoluição da Baía de Guanabara e suas afluentes, como o Canal do Cunha e o Canal do Fundão.

Em junho, o governador em exercício do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, anunciou planos de saneamento e revitalização similares para a Lagoa de Jacarepaguá, na Zona Oeste do município. Segundo o governador, esse projeto faz parte da concessão da CEDAE e deve ser realizado nos próximos 12 anos, com investimento de 250 milhões de reais. Já no caso da Maré, há obras em andamento no Tronco Coletor Faria Timbó, parte importante do projeto de saneamento, pois evita que o esgoto seja lançado nos canais do Cunha e do Fundão. A previsão do governo é que esse trecho seja concluído ainda em 2022 e os canais em 2023. Contudo, mesmo tendo sido aprovada pelo PDBG, a galeria de cintura segue sem previsão de construção. 

Procurada pela equipe da reportagem, a CEDAE não respondeu às tentativas de contato a respeito do andamento das obras de saneamento na Maré.

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