O PAÍS QUE NÃO AMAVA AS MULHERES

93 anos após eleição da primeira prefeita do país, Brasil tem menos políticas eleitas que a Arábia Saudita e violência política contra candidatas cresce.

    Reportagem: Amanda Célio          Arte: Giulia Santos          Edição: Fred DiGiacomo

O Brasil ainda não tinha permitido o sufrágio feminino quando Alzira Soriano, 32, se tornou em 1928 a primeira prefeita do país em Lajes, pequeno município no interior do Rio Grande do Norte. Sua eleição, recebida com surpresa e repercutida internacionalmente em jornais como The New York Times, só foi possível devido à Lei Estadual 660, homologada em 25 de outubro de 1927, que, segundo registro do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE-RN), autorizava a participação de mulheres na política potiguar: “No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei, dizia um trecho do texto.

Alzira ficou viúva aos 22 anos e, com seus três filhos, voltou para a casa dos pais onde começou a se interessar por política. Era filha de coronel – que já tivera participação na política – e pertencia a uma família tradicional da cidade. Quando resolveu entrar para a vida pública, teve sua candidatura apoiada pelo governador da época, José Augusto Bezerra de Medeiros, pelo seu sucessor, Bezerra de Medeiros, e pela bióloga e líder feminista paulistana Bertha Lutz, que chegou a visitar Rio Grande do Norte naquele mesmo ano para um almoço com o atual governador afim de certificar-se que de fato haveria candidaturas femininas nas eleições municipais de Lajes. 

Em 2 de outubro de 1928, Lutz teve o prazer de escrever um artigo de meia página para o jornal carioca “O Paiz”, assinado também pelas feministas Orminda Bastos e Carmen Portinho, da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, anunciando a entrevista com “a senhora Alzira Teixeira Soriano, a primeira eleitora no município de Lajes para o qual foi eleita prefeita nas eleições”. As primeiras aspas de Alzira no impresso traziam uma mensagem da sensação de emancipação da mulher na política: “A mulher pode ser mãe e esposa amantíssima e oferecer ao mesmo tempo à pátria uma boa parcela das suas energias cívicas e morais”. 

Mesmo alcançando o mais importante cargo municipal, a prefeita não deixou de ser vítima do machismo e de uma sociedade ainda mais patriarcal, que era regida pela República Velha. Dizem que seu adversário na eleição, Sérvulo Pires Neto Galvão, saiu da vida pública e mudou-se de cidade após perder a eleição para uma mulher. Outros adversários políticos de Alzira falavam sem pudor que mulheres na vida pública eram prostitutas e insinuavam que ela tinha um caso com o governador. Após tomar posse em janeiro de 1929, seu gabinete foi formado apenas por homens, salvo sua exceção.

Brasil na 133ª posição em representatividade feminina na política

93 anos após a eleição da primeira prefeita do Brasil e 89 anos depois da conquista do voto feminino no país, os avanços para combater a desigualdade de gênero na política e os assédios sofridos por mulheres eleitas não progrediram muito, ainda que parte da sociedade, sobretudo os movimentos feministas, continuem lutando e buscando ferramentas para monitorar essas denúncias. 

Embora as mulheres tenham aumentado suas cadeiras no Poder Legislativo nas eleições de 2018, essa amplificação não foi suficiente para que o Brasil saísse de posições alarmantes. Que aumento foi esse que ocorreu em 2018? Na Câmara de Deputados, houve um aumento de 51% no número de eleitas em relação a 2014 – de 51 para 77 deputadas, do total de 513 lugares. Já nas assembléias legislativas, 161 deputadas estaduais se elegeram, um aumento de 35%. No Senado não houve evolução na representatividade de gênero, sete mulheres foram eleitas senadoras, mesmo número de 2010. 

De acordo com o ranking da União Inter-Parlamentar, que reúne os Parlamentos do mundo inteiro, o Brasil ocupa apenas a 133ª posição entre os 191 países avaliados.  A representação de mulheres parlamentares no Brasil atinge uma taxa de 15%, o que significa que está bem abaixo da média mundial, que foi de 24,3% em 2018. 

Arábia Saudita tem mais mulheres na política que o Brasil

Segundo a Atenea, uma publicação da iniciativa da ONU Mulheres para acelerar a participação política das mulheres na América Latina e no Caribe, no Brasil as mulheres permanecem em condição de desigualdade também em outras dimensões da vida social, seja nas relações de trabalho, seja no lar. Por exemplo, em 2014, a renda das mulheres era equivalente a apenas 74% da renda dos homens. Porém, quando se compara o caso do Brasil em relação aos demais países em termos de dados gerais de paridade, o que mais sobressai é a condição precária da participação política formal das mulheres. “Nas demais dimensões houve avanços, mas é na política que a paridade está mais distante”, diz a publicação. 

Para se ter uma ideia, segundo o ranking da União Inter-Parlamentar, a Arábia Saudita, que permitiu o voto feminino só em 2005, tem mais mulheres na política do que o Brasil. Aqui, além de todos os problemas que afastam as mulheres dos cargos políticos, a fragilidade da legislação de cotas partidárias, o machismo institucionalizado e a violência sofrida no ambiente de trabalho são os fatores que mais se destacam.

O TretAqui, uma plataforma que reúne denúncias sobre violência política durante o período eleitoral dentro e fora das redes, fez um levantamento durante as eleições municipais de 2020. Entre os que mais praticaram violência política estão os homens cisgênero, responsáveis por 83% das denúncias recebidas. As mulheres foram as que mais receberam ataques e denúncias de violência política. 

Segundo o boletim trimestral do Observatório da Violência Política e Eleitoral no Brasil, o percentual de mulheres vítimas de violência política sobe desde o início de 2020. Entre janeiro e março de 2020, apenas 3,4% das lideranças vítimas de violência eram do sexo feminino. Esse percentual subiu para 7% entre abril e junho até alcançar o seu maior valor entre julho e setembro (9,8%). 

Nas denúncias recebidas no TretAqui, as candidatas receberam 71% dos ataques, sendo 65% mulheres cis e 6% de mulheres trans. 

O Instituto Marielle Franco também coletou dados sobre a violência política sofrida por mulheres. Para a diretora Anielle Franco, historicamente as mulheres negras que se colocam à disposição para concorrer ao pleito institucional foram recebidas por violências. As opressões costumam estar relacionadas a raça, gênero e classe. “Em nosso estudo, identificamos que 8 a cada 10 mulheres candidatas comprometidas com pautas antirracistas já sofreram algum tipo de violência virtual. Por outro lado, do total de mulheres que sofreram violência política anterior, apenas 32% efetuou denúncia, o que revela a exposição e risco que as candidatas negras sofrem com essa interseccionalidade”, afirmou. 

Violência digital contra mulheres

As mulheres também não ficam de fora das fake news. A plataforma TretaAqui recebeu denúncias de violências e notícias falsas disseminadas nas redes sociais. A deputada federal Luíza Erundina (Psol) e a candidata à prefeitura de Porto Alegre (RS) Manuela D’ávila (Psol) foram os principais alvos das denúncias.

Em março deste ano, a vereadora Benny Briolly (PSOL), parlamentar mais votada nas últimas eleições em Niterói, denunciou uma dupla agressão do vereador Douglas Gomes (PTC). Segundo a vereadora, Douglas realizou ataques racistas e transfóbicos contra ela, tanto nas redes sociais, quanto em espaços políticos. As agressões teriam começado em 29 de dezembro de 2020. 

O episódio mais recente foi relatado posteriormente por sua equipe nas redes sociais: “O vereador do PTC, que já acumula diversas polêmicas dentro da casa legislativa, quebrou mais uma vez o decoro parlamentar ao tentar agredir fisicamente a vereadora do PSOL. Antes do desfecho, Douglas foi ao microfone chamar a vereadora de ‘vagabundo, moleque, seu merda e mentiroso’. Professor Túlio, colega de bancada, precisou intervir na situação”. 

Em dezembro do ano passado, o vereador estava em um carro de som quando incitou seus apoiadores a atacar fisicamente a vereadora, que só não foi agredida fisicamente devido à solicitação de escolta feita pelo presidente da Comissão de Segurança, Renato Cariello, naquele momento. 

Benny Briolly ressalta que, não é a primeira vez que sofre agressão por Douglas. “Somos o país que mais assassina travestis e trans no mundo. O vereador usa de suas redes e espaços políticos para fomentar esses crimes, se legitimando na imunidade parlamentar, inclusive dentro do plenário”, disse.

No caso da vereadora, a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância indiciou o vereador Douglas Gomes por tentativa de homicídio, racismo e transfobia contra a vereadora Benny Briolly pela agressão ocorrida em dezembro. No entendimento da polícia civil, o fato ocorrido foi uma nítida tentativa de homicídio devido à tentativa de linchamento físico.

 

 

 

 

“Ao mesmo tempo que temos 133 anos da abolição do processo escravocrata, a nossa democracia e os direitos da população oprimida são direitos tardios. Não é fácil para uma mulher trans, negra e pobre ocupar o parlamento brasileiro. Se eles combinarem de nos matar, a gente se organiza para nos mantermos vivas”

Benny. 

A falta de ações concretas pelas instituições garantidoras da segurança política contribuem para que a violência política, sobretudo às mulheres negras e trans continuem aumentando. Poucas mudanças efetivas podem ser comemoradas nos quase 90 anos da conquista do voto feminino no Brasil. 

Entender que o poder público é o principal responsável por diminuir essas estáticas por meio da promoção de ações e políticas públicas na sociedade civil talvez seja o grande desafio para que a desigualdade de gênero e a violência política sejam superadas, e assim, as mulheres consigam ter mais espaço e reconhecimento na política brasileira. 

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