Reportagem: Gabriele Roza Arte: Nicolas Noel Edição: Fred DiGiacomo
Para entender melhor os problemas da educação hoje no Brasil e como aliviar os traumas que o ensino durante a pandemia deixa nos alunos e professores, conversamos com a professora e pesquisadora Pâmella Passos. Além de dar aulas para turmas do Ensino Médio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Pâmella realiza o segundo estágio de pós-doutorado sobre os impactos do Conservadorismo no Ensino de História, na Universidade Federal Fluminense. Na entrevista, Pâmella conta como a pandemia mostra a urgência da reforma do modelo de ensino no país.
data_labe: Como você percebe a relação dos professores e estudantes durante a pandemia?
Pâmella Passos: “Crash no limite” é um filme antigo que fala que está todo mundo muito mal, mas as pessoas não conseguem perceber que o outro está mal. Esse filme é legal para pensar a educação nesse momento, porque os alunos estão no limite, os professores estão no limite, isso vira um copo cheio, um barril de pólvora. Os alunos estão em sofrimento e os professores também e aí não está dando match porque só tem sofrimento. Os professores estão tirando dinheiro do bolso, muitas vezes, para ter uma internet melhor, para comprar câmera, fazer curso, comprar um celular. Quando o aluno não faz a atividade, não entrega, o professor leva pro pessoal. Eu brinco dizendo que eu faço terapia, eu fico triste, mas eu sei que não é pessoal. Outro dia eu falei: ”eu tô muito piegas, eu tô chorando só porque vocês abriram a câmera, eu acho que preciso aumentar a terapia, não tá dando”, aí eles começam a rir. A gente precisa rir dessa situação, não significa debochar, não levar a sério, mas o riso como um escape, o riso como um abraço virtual, sabe?
Quais são os desafios de passar um conteúdo por meio do vídeo?
Pâmella Passos: Os meus vídeos são toscos. Eu brinco dizendo que meu power point é da década de 80. Eu fiquei uma hora pra gravar a aula de Primeira Guerra Mundial, meu Deus do céu. No final, pensei: ”Que mapa é esse que ninguém tá enxergando? Onde está a fronteira da Tchecoslováquia?” Falei: “Gente, só imagina porque eu não sei fazer o efeito ali de ampliar a Tchecoslováquia”, aí todo mundo ri.
A gente também foi formado para achar que o professor não erra e o professor erra, porque o professor é um ser humano. A gente tá em constante aprendizado, a questão é que a gente vai se dedicar, ter fontes seguras. Tá todo mundo se esforçando pra fazer alguma coisa bacana. Tem exceção, óbvio que tem. Às vezes têm professores que os alunos acham que são muito rígidos, ele grava uma vídeo aula de uma hora. Ele só não entendeu que não é sobre conteúdo, sabe? Ele acha que se ele explicar várias vezes, o aluno vai entender, mas ninguém consegue ouvir o vídeo.
O que é o ensino conteudista e para que ele serve?
Pâmella Passos: O ensino conteudista é uma abordagem que vai priorizar o aluno decorar conteúdos e não refletir sobre eles. Ele serve para não proporcionar autonomia, mas proporcionar reprodução de conteúdos; não criação, invenção, potência, e, para mim, educação é isso. Na minha visão, o ensino conteudista serve para não problematizar, para não ter uma visão crítica sobre as desigualdades sociais, como por exemplo, a realidade de não ter vaga para todo mundo nas universidades.
Tem gente que pensa que uma das coisas mais importantes da educação era passar de ano, isso já mostra como essa visão da educação estava errada antes da pandemia. Tem gente que passa de ano, tira nota 6, 7, 8, dependendo da meta, mas não aprendeu nada naquele processo. E tem gente que aprendeu muito naquele processo, mas que às vezes na hora da avaliação, da prova não foi bem, por isso que a gente, de uma concepção mais progressista da educação, defende uma avaliação processual, uma análise conjuntural mais ampla. É muito bonito falar de ensino processual, mas ele só é aplicável com condições de trabalho para os professores, para os alunos e alunas adequadas. Os profissionais de educação não podem ter 10 turmas com 500 alunos e acompanhar processualmente cada um dos seus alunos e as suas turmas.
Podemos chamar as aulas online de ensino?
Pâmella Passos: Interação remota é o nome, educação é muito mais, ensino é muito mais, isso que a gente tá fazendo é interação. Eu faço referência ao Colégio Pedro II, que em 2020 chamou de interação remota. No ano passado, as pessoas estavam numa correria pra dar conta de atividades educacionais, num contexto de desemprego, de fome, de incertezas, e deixando para trás uma série de discussões pedagógicas muito importantes. O aluno precisa ter condições, não só materiais, como o computador, mas condições psicológicas para aprender alguma coisa. Se ele está com alguém em casa com risco de morte porque está com covid-10, ou com várias pessoas sendo mandadas embora de seus empregos, isso vai afetar na aprendizagem dele.
O que os professores podem fazer para repensar a forma de ensino e interação com os alunos?
Pâmella Passos: Que essa crise sanitária seja um momento para pensar nossos currículos. Eu como professora de história, vou seguir ensinando apenas República da Espada, Estado Novo? Ou vou me aprofundar para pensar Gripe Espanhola que, pela correria do currículo e da falta de tempo, muitas vezes não consigo abordar?
Ou vou levar mais tempo discutindo o movimento da Revolta da Vacina, não compreendendo como um desconhecimento do que era a vacina, mas como uma necessidade de um diálogo da saúde pública com a população, com as diferentes religiões, com as diferentes crenças?
Que a gente possa, nesse novo formato, repensar sermos menos conteudistas e mais processuais. Não é sobre a quantidade de séculos que eu ensino os meus alunos, mas sobre como eles compreendem que a história pode se repetir e que a gente precisa se entender como sujeito nesse processo para não repetir erros, para não seguirmos num Brasil racista, por exemplo, ainda que tenhamos terminado com a escravidão desde 1888.
A gente ficou esse tempo todo discutindo, muitas vezes, sobre quantas horas os alunos deveriam ter de aula e esquecemos de cobrar políticas públicas, como o Plano Nacional de Banda Larga. O acesso à internet, o acesso à comunicação é um direito, um direito humano, o direito a ter informação sobre saúde, sobre educação. A gente vê a realidade de alunos que moram em lugares onde os cabos são roubados, onde não tem condições de ter internet. A situação é muito grave e, nesse contexto, ficar discutindo conteúdo é não entender o período histórico que a gente está vivendo.
Paulo Freire, em um dos seus textos, diz para ajudarmos as crianças a ”reinventar o mundo”. Você acredita que é possível reinventar a educação e reinventar o Brasil?
Pâmella Passos: Eu sou mulher preta, se eu não tivesse esperança eu nem acordava. Infelizmente, por causa de uma ausência de políticas públicas efetivas no nosso país, essa pandemia está durando muito mais do que deveria durar. Que a gente possa tentar, mais uma vez, reconstruir tudo nesse país, que tem passado os últimos anos de desesperança, de tempos difíceis. Que a gente possa entender que é muito além da matemática, do português, da história, da química e da física,e é isso também, porque [essas disciplinas] estão na nossa vida.
Paulo Freire fala da pedagogia dos sonhos possíveis, que a gente possa pensar os nossos sonhos possíveis, porque querem tirar os nossos sonhos. O avanço conservador quer fazer com que a gente acredite que as coisas são como elas são e são imutáveis, mas estátuas podem ser derrubadas e outras podem ser construídas. O Brasil é formado por população negra escravizada, roubada da África, que aqui teve que contar suas histórias na oralidade, sem estátuas, sem homenagens, a gente também sabe sobreviver e seguir sonhando, a gente tem que ocupar os lugares e fazer de outras formas.