Acompanhados por um antigo pescador e morador do Parque União, fomos em busca das árvores de mangue que ainda existem no litoral do Complexo da Maré, uma das maiores favelas do mundo.
Julho é considerado mês dos manguezais, um ecossistema vivo na memória dos moradores mais antigos do Complexo da Maré (RJ), cujas histórias se cruzam com a lama debaixo das palafitas, nas madeiras das árvores utilizadas para construção das casas e pontes e na lembrança dos pescadores da região. Mas como estão os manguezais da Maré atualmente?
Antes dominada por ilhas, florestas extensas e praias de mar calmo, a região de 578,84 hectares, onde atualmente se encontra o conjunto de favelas da Maré, lar de mais de 140 mil pessoas, foi um cenário de extrema beleza natural e rica biodiversidade. As águas da Baía de Guanabara adentravam imensas porções do território que hoje chamamos de Zona Norte da Cidade do Rio de Janeiro através da Enseada de Inhaúma. Antigas faixas de vegetação, lama e maré, hoje, dão espaço a milhares de casas, indústrias, escolas, avenidas e ao caos da poluição que afeta nossas matas, rios e atmosfera. O pouco mangue da Maré que consegue se manter vivo é a perfeita representação de resiliência. Onde morre o manguezal também morrem tradições populares, as histórias de um povo e vidas cuja fonte de recursos era a própria natureza.
Em nossa busca foi impossível não cruzar com as histórias de um antigo pescador local, Hélio de Carvalho (55), que pratica a pesca tradicional há 40 anos e foi um dos fundadores da colônia de pescadores que existe embaixo da Linha Vermelha, no Parque União, uma das 16 favelas do Complexo da Maré.
De origem humilde, Hélio sabe bem o que é enfrentar adversidades para sobreviver: “no começo foi difícil quando eu queria comprar o meu próprio material. Eu [pescava] com dois pescadores já senhores, um ainda vivo é o Seu Vicente e o outro era Seu Valdemar, hoje já falecido. Eu já tinha aprendido a costurar rede com eles na praia, mas para eu ter uma rede eu juntava um dinheiro, ia no mercado. Vamos fazer uma suposição, a rede era R$ 80, eu chegava lá com os R$ 80, no mercado São Pedro, a rede era R$ 90… Não tinha como comprar. Eu nunca conseguia comprar e aí continuei pescando com eles lá. Depois com o tempo comecei a trabalhar de ajudante de pedreiro, no final de semana eu recebia meu dinheiro e no sábado estava no mercado comprando rede, quando acabei de comprar a rede eu comprei os cabos da rede, as bóias e os chumbos. Hoje em dia eu pego serviço de entralhamento de rede, costuro tarrafa, monto qualquer tipo de rede. Hoje em dia também tá tudo alto [preços] com esse problema da pandemia.”
A natureza exuberante e a grande oferta de pescado são as principais lembranças de uma época em que o regime de marés dominava o território. São memórias vivas na história de Hélio, que também não esquece de antigos companheiros de pesca: “me recordo muito bem como era a maré aqui do Parque União. A maré tinha uma extensão muito grande em largura e não existia o CIEP César Pernetta, não existia a linha vermelha, a maré era larga. A gente buscava tainha lá do outro lado no mangue, tinha tainha pra caramba, a gente botava a rede do outro lado né? Lançava a rede, cercava a beirada e deixava lá de espera. A gente via elas [as tainhas] levantando a rede. A rede era alta e embolava, a gente ia lá depois de uma hora, recolhia as tainhas e vendia na comunidade. O mangue era vivo, tinha caranguejo, aquele caranguejo-uçá tinha muito. Tinham mais pescadores, hoje em dia tudo já falecido, muitos que fizeram história foram esquecidos como o pescador Dilon, Seu João, o Leca, o Nininho, todos esses.”
Com o passar do anos, a política de aterramento de áreas alagadas na cidade deu início a um processo de modificação da paisagem natural da Enseada de Inhaúma, impactando na biodiversidade e na forma de vida dos moradores da região. A fala de Hélio retrata bem este processo: o manguezal tinha muito caranguejo, muito mesmo, aí foram aterrando, aterrando, vieram algumas empresas e acabou, ficou tudo aterrado. Hoje o manguezal é só uma faixinha pequena e só tem uns pés de mangue. Tem pouco tempo, a mais ou menos cinco anos, ali vinha tainha e agora sumiu totalmente, sinal de que está muito [alto] o nível de poluição. Agora só nos restam recordações: tempo bom, tempo das palafitas.”
Na companhia de Hélio, fomos encontrar os mangues que ainda estão de pé no Complexo da Maré. A busca ocorreu nos limites da favela do Parque União, nas proximidades da colônia de pescadores e da Linha Vermelha. Não foi fácil encontrar as árvores de mangue. Além do mato ser bem alto e existirem muitas espécies de árvores de terra, como por exemplo amendoeira e pé de mamona, o lixo de todo tipo (fraldas, brinquedos, utensílios de cozinha, embalagens de alimento, de produtos de limpeza, peças de automóveis e etc) acumula na lama e o forte cheiro de esgoto domina o ar, dificultando o acesso ao canal que separa a Maré da Ilha do Fundão. Foi preciso explorar regiões mais para dentro do canal e não estávamos de barco, todo trajeto foi feito a pé, mesmo assim não desistimos. Neste ponto foi possível avistar e se aproximar de uma pequena ilhota de mangue-branco (Laguncularia racemosa), cercada por poucas árvores de mangue-preto (Avicennia schaueriana). Uma toca na lama também foi avistada, mas nenhum sinal de caranguejos.
A busca seguiu dentro da colônia de pescadores, onde também foi possível avistar poucas árvores de mangue-preto e branco, mas nenhum sinal de mangue-vermelho (Rhizophora mangle) foi notado. Embora, segundo Hélio, ainda exista mangue vermelho em locais próximos onde ocorreram projetos de revitalização e recuperação de áreas de manguezal degradado.
Se os mangues são as espécies de árvores, o que seriam os manguezais? A oceanógrafa Viviane Fernandez, doutora em meio ambiente e professora adjunta na Universidade Federal Fluminense (UFF) define para nós. “Existe uma definição clássica de manguezais, mas hoje eu definiria assim: manguezais são ecossistemas formados por árvores, animais e isso inclui nós, seres humanos, que vivem em um ambiente de transição entre a terra e o mar, regulado pelo fluxo das marés. É importante preservar os manguezais, entre outros fatores, porque sem eles nossos mares terão menos peixes, espécies poderão ser extintas, as inundações poderão aumentar em áreas baixas da planície litorânea. Por exemplo, a região da Praça da Bandeira era formada por manguezais que foram aterrados e por canais que foram retificados. Por isso, foram necessárias grandes obras de engenharia para conter parcialmente as enchentes que ali ocorrem.”
Viviane traz em sua jornada reflexões sobre a existência humana e o domínio da natureza, e não deixa de citar os manguezais da Maré, que deveriam existir em plenitude de serviços ambientais: “o escritor e ambientalista indígena Ailton Krenak destaca que deixamos de prestar atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano. Para ele, a humanidade é constituída por um seleto grupo de pessoas que passou a definir que a natureza deve ser dominada para proporcionar seu bem-estar na Terra. Explica que a maioria dos humanos faz parte da “sub-humanidade, que vive numa grande miséria sem chance de sair dela”, mas que continua tentando. Ele destaca também que fazem parte da sub-humanidade os povos que vivem vinculados à Terra: caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes, e que é com eles que precisamos aprender. Na minha opinião o que levou os Manguezais da Maré à destruição quase completa foi o mesmo fator que vem destruindo todo o planeta, a ideia de progresso inerente ao sistema econômico capitalista. Neste caso, os manguezais foram convertidos quase completamente e, por isso, os serviços ambientais deixaram de ser prestados por eles. O termo “serviços ambientais” é uma tentativa de dar destaque, de atribuir valor, a tudo que a humanidade recebe “gratuitamente” da natureza. Estes incluem produção de alimento e água; controle de enchentes, secas e doenças; ciclos de nutrientes e serviços culturais como recreação, valores espirituais e religiosos e outros benefícios não materiais.”
A busca pelos manguezais da Maré evidenciou para nós a necessidade urgente de medidas para cuidar desse ecossistema, cujas poucas árvores remanescentes no território agonizam e não se sabe até quando resistirão de pé. O pescador Hélio pensa em medidas que possam melhorar a qualidade da água do mar na região: “o canal do Fundão é bem estreito, é tudo assoreado. Bom seria uma boa dragagem ali pra poder aprofundar bem para ter um fluxo de água legal, e aí [a água] vai renovando… a maré mesmo faz o serviço de renovar. A água lá de fora entra, vem ali pelo Caju, vem do lado da ponte Rio-Niterói, [a água] entra e vai circulando e aí vai aparecendo peixe”. A oceanógrafa Viviane segue na mesma linha de Hélio: “para que os manguezais remanescentes sobrevivam é necessário manter o fluxo de água nos locais onde eles ainda ocorrem, garantir a qualidade dessa água, evitar a chegada de lixo e impedir os aterros.
Ao olharmos para a situação ambiental do Complexo da Maré, somos atravessados por questões que vão além da sobrevivência das árvores de mangue. Percebemos que quando falamos de ecologia falamos também de justiça social. O acesso a um meio ambiente saudável e que promova qualidade de vida para as populações adjacentes, não pode ser na prática, um direito apenas dos mais ricos. Meio ambiente não é mercadoria. Dialogar com comunidades tradicionais ou faveladas de forma acessível e participativa é um dos desafios das ciências ambientais. É preciso que ambientalismo e saúde pública deixem de ser pautas chatas ou elitizadas e que os debates ganhem força nos territórios mais desprovidos de direitos. Cuidar da natureza também é cuidar da cultura e do modo de vida dos nosso avós.
A garantia de uma vida digna para os mais de 140 mil moradores do território precisa ser pauta constante da sociedade civil e das autoridades, garantir que as memórias ambientais não se percam é parte importante desse processo: “acredito no poder do resgate da memória das relações que os primeiros moradores tinham com os manguezais e a Baía. Essa memória pode ajudar na definição do que realmente importa”, diz Viviane. O Núcleo de Estudos em Manguezais (NEMA – UERJ), laboratório onde Viviane desenvolveu inúmeras pesquisas, há muitos anos vem produzindo conhecimento acerca dos manguezais da Baía de Guanabara, cujas águas conduzem Hélio e os demais pescadores diariamente em suas jornadas no mar. É preciso garantir que as árvores de mangue não sumam. Que os Hélios não sumam. Que a história que liga a ancestralidade das favelas e da natureza não sumam. O mangue é a Maré. E ambos resistem.
*Breno é colaborador do data_labe no âmbito da parceria com o PPGTU/PUCPR e Durham University em pesquisa sobre ativismo digital e territórios urbanos da margem, apoiada pela British Academy.