Terra
Prometida

Moradores de favela carioca combatem fome com agricultura orgânica no meio da cidade

Reportagem: Gabriele Roza
Fotos e vídeos: Clara Sthel
Arte: Nícolas Noel

A rua em frente à estação da BRT Vila Kosmos, na zona norte do Rio de Janeiro, se parece com o início de uma típica favela carioca. Mototaxistas de um lado e um ponto de kombi do outro. A Soldado Bernardino é uma das ruas de acesso à Terra Prometida, uma comunidade localizada no Complexo da Penha. Para chegar até lá, a agricultora urbana Ana Santos indicou: “Você pode descer na esquina e pegar o mototáxi ou o ‘Uber favela’ até o final”. Quando acaba o asfalto e começa o chão de barro, as casas de madeira e pau a pique despontam: “é uma área rural no meio urbano”, diz Ana.

Em 2011, Ana e outras moradoras criaram o Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), um espaço de integração socioambiental e cultural da comunidade. Mas foi em 2018 que elas perceberam que poderiam manter a área verde incentivando a produção de alimentos nos quintais das casas. São esses quintais que hoje, na atual crise alimentar, ajudam a colocar a comida na mesa. “A gente não precisou esperar a pandemia para plantar, mas na pandemia isso se torna muito maior por conta da questão da fome. Na semana passada, não tinha arroz, então a gente colheu cinco quilos de aipim e almoçou aipim”, diz Ana.

Rose Cristina, moradora da Terra Prometida, com os alimentos cultivados nos quintais da comunidade.

A agricultora Ana Santos com as mudas de couve.

Leildes Xavier na porta de sua casa na comunidade Terra Prometida.

Cultivando soluções

19 milhões de brasileiros estão passando fome. Mais da metade da população brasileira  não tem acesso pleno e permanente a alimentos. Esses dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar e foram coletados durante a pandemia da covid-19, mas as previsões para o futuro são ainda piores.

Segundo o relatório “O Estado da segurança alimentar e nutrição no mundo 2020” (SOFI), produzido pela ONU e outras organizações, atualmente a fome afeta 7,4% da população da América Latina e Caribe, a previsão é de que este percentual aumente para 9,5% em 10 anos.

Como podemos escapar dessa sina? Em cada periferia do Rio de Janeiro você encontra iniciativas dos próprios moradores de combate à fome acirrada na pandemia de covid-19. Coleta de alimentos e entrega de cestas básicas se tornaram rotina de pessoas nas favelas. Mas a Terra Prometida, comunidade rural no Complexo da Penha, mostra como a soberania alimentar pode fazer parte da vida das pessoas faveladas.

“A gente precisa sobreviver”

Leildes Xavier dos Santos, 39, apresenta o quintal de sua casa com muito orgulho. Ela mesma se perde na quantidade de plantas cultivadas, que vão desde o arroz e feijão, passando pelo quiabo, aipim, batata doce, pepino, mamão, banana, tomate, até plantas medicinais como a chaya, boldo e aroeira. 

“Essa aqui é a vinagreira, serve pra remédio, pra matar fome, pra tudo. Na minha gravidez a salvação foi isso”, aponta orgulhosa Leildes. 

A filha mais nova de Leildes acabou de fazer um ano, mas ela tem outros seis filhos que moram com ela e o marido na Terra Prometida há dois anos. “A diferença de ter esse espaço é que você não compra, você colhe do seu quintal. Nem sempre dá pra comprar. Na crise que nós estamos agora, então…” Leildes explica que na pandemia, a família vive do Programa Bolsa Família e dos bicos que o marido faz. 

Leildes Xavier, 39, e sua filha Maria Eduarda Xavier, 8 anos, mostram um pouco da produção agroecológica dos quintais.

O quintal produtivo agroecológico é uma tecnologia possível de ser replicada em comunidades rurais e urbanas. Além de produzir alimentos na própria casa, as famílias dos treze quintais mapeados pelo CEM trocam entre si os alimentos produzidos. “Tem coisas que na minha terra não vai dar, mas do outro lado na Leildes que tem uma outra posição do sol vai dar”, diz Ana Santos.

Como a Serra da Misericórdia é um morro, a plantação é feita em curva de nível, a produção é organizada em linhas de diferentes altitudes de acordo com o terreno. “Se a gente plantar reto, quando chove vai tudo. Em morro tem um plantio diferente. A galera pergunta se dá pra plantar em morro. Dá! A gente tem a dimensão que pra plantar você precisa ter um grande espaço, mas se a gente tiver recortes de terra, a gente consegue”. 

Eu entendo que vai além do plantar porque a gente também troca relação, sabores, afetos e a gente consegue trabalhar a preservação ambiental de uma maneira muito mais suave do que [essa ideia de que] ‘a gente precisa de árvores’. Não, a gente precisa sobreviver”, Ana Santos, agricultora urbana.

A disputas pela Terra Prometida

Apesar da Serra da Misericórdia ser uma Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (APARU), desde 1940 pedreiras privadas estão presentes no território. “Aqui desse lado é a extração de mármore, essa pedreira faz brita, pedra zero, cimento, pó de pedra”, explica Ana. 

Segundo a pesquisa de Éric Vidal, aproximadamente 33% da Serra da Misericórdia (80 hectares) são ou foram alvo de exploração mineral.  De acordo com o pesquisador, a matéria prima é retirada do maciço de gnaisse, uma rocha metamórfica muito utilizada na construção civil e na pavimentação, e os blocos são removidos através de explosões semanais, que acabam causando rachacuras em residências próximas. 

O CEM e o Verdejar, um outra organização que atua na região, denunciam que a atividade causa a degradação ambiental do maciço, retira a cobertura vegetal e do solo superficial e contribui para a formação de ilhas de calor, assoreamento de rios, destruição de nascentes e a poluição do ar e sonora.

Os quintais agroecológicos são uma forma de pressionar a preservação do que ainda resta do ecossistema e recuperar as áreas degradadas. Mas os desafios para manter o projeto vivo não param por aí: “Já existe uma dificuldade de arar a terra porque é morro, é alto, mas quando eu to lá no alto pode dar tiro. São muitas as relações de poderes e com a insegurança alimentar o tempo todo batendo na sua porta”, lamenta Ana. “Tem os animais soltos também, que não é um cachorro solto, é uma vaca que derruba cerca e acaba com a plantação”.

Os agricultores urbanos ainda lidam com a falta de água frequente na comunidade. Recentemente, o CEM conseguiu construir uma cisterna para aumentar o plantio. “Apesar da gente ter várias nascentes, a água não chega. É uma comunidade que não é mapeada pela prefeitura, que não tem acesso a água e a luz. A gente ficou com falta de água por duas semanas, a gente perdeu nossas alfaces, perdemos tudo”.

As moradoras da Terra Prometida Maria de Lourdes Ferreira, Ana Maria de Sousa e Ana Santos posam com os alimentos dos quintais.

“Cultivar a soberania é um super desafio”

Quando a crise chegou, os agricultores do CEM perceberam que o que eles produziam não era o suficiente para matar a fome, “então a gente começou a fazer uma campanha com a Rede Ecológica, recebe doações de outros parceiros e reverte isso em cestas agroecológicas”, explica Ana. São 200 famílias do Complexo da Penha cadastradas no sistema de entrega de cestas básicas do CEM. Durante sete meses, a organização usou das doações em dinheiro que recebeu de pessoas físicas e grupos parceiros para comprar alimentos para as pessoas que estavam em uma situação de insegurança alimentar na favela.

O grupo resolveu fortalecer a produção agroecológica e comprou os alimentos no Assentamento de Reforma Agrária, também chamado Terra Prometida, em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense do Rio. “Você prefere comer arroz e feijão do que comer aipim cozido, por exemplo, então a gente trabalhou esse outro olhar de que a gente precisa se alimentar de verde, que é o que é nutritivo e que pode nos manter firmes”, explica Ana.

Para Ana, o conhecimento trocado durante as entregas dos alimentos pelos agricultores de Caxias no Complexo da Penha foi o que deu mais sentido para a parceria. “Como a gente pode pincelar essa assistência, esse apoio para transformar em autogestão é o nosso desafio diário. Cultivar a soberania é um super desafio”. 

Com a troca entre as comunidades, as pessoas da Terra Prometida do Complexo da Penha aprenderam a produzir em uma escala maior e também entenderam que é possível se alimentar de uma forma mais saudável. “Muita gente passou a reconhecer que estava envenenado, que só estava comendo porcaria”.

Como popularizar os alimentos saudáveis para a população periférica?

“Como popularizar os alimentos saudáveis para o conjunto da população, sabendo que nem todo mundo tem o dinheiro para comprar o produto orgânico?”, questiona Bia Carvalho, agricultora do Coletivo Terra, do Assentamento Terra Prometida, em Caxias. 

“Seria possível se a política pública acreditasse nesse potencial, mas como a gente não tem nesse município, a gente faz uma articulação muito forte com a sociedade. A gente costuma dizer que a gente não é sozinho nunca, a gente só resistiu até aqui por causa da luta coletiva do campo e da cidade”.

O Coletivo Terra participou de outras campanhas de doação de comida, como a campanha nacional Tem Gente Com Fome, organizada pela Coalizão Negra Por Direitos e outras ONGs. Entre os dias 15 de abril a 7 de maio de 2021, o assentamento conseguiu montar 4900 cestas para a campanha.

Bia Carvalho é agricultora do Assentamento de Reforma Agrária Terra Prometida, em Duque de Caxias.

Daniel Vieira com os alimentos agroecológicos separados para a entrega.

O Assentamento Terra Prometida mostra que é possível combater a fome com alimentos orgânicos.

Daniel Vieira Júnior, 36, agricultor do Coletivo Terra, explica que os projetos solidários, além de serem fundamentais para gerar renda no assentamento, ajudam a dar visibilidade para as pessoas que estão passando fome. 

Ele explica que o coletivo se organiza para vender produtos acessíveis para a maior parte da população, “não são preços caros, eu sei que o produto orgânico é caro, mas a proposta daqui é produzir um alimento bom e barato. Não é só rico que tem que ter acesso a cestas de orgânico, pobre também tem que comer bem, se alimentar bem”, diz o agricultor.

As duas Terras Prometidas passam por uma série de obstáculos para produzir e distribuir comidas saudáveis para pessoas periféricas, “é um desafio enorme, a gente conseguiu desafiar a estrada ruim pra passar o alimento, tivemos que passar com quase 5000 cestas no braço porque a estrada não dá pra passar carro”, lembra Bia Carvalho. “A grande pergunta é: por que não há esses investimentos se a gente já tá mostrando na prática que é possível combater a fome?”

Essa reportagem faz parte da série de publicações produzidas como resultado do programa Laboratório de Jornalismo de Soluções, da Fundação Gabo e da Solutions Journalism Network, com o apoio da Tinker Foundation, instituições que promovem o jornalismo de soluções na América Latina.

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