Trabalhos
de axé

Jovens, que são maioria no candomblé, lidam com preconceito no trabalho e usam saber milenar no ambiente profissional

Reportagem:  Edilana Damasceno

Edição: Fred Di Giacomo

Arte: Juliana Messias

Durante o horário comercial, ela veste seu uniforme branco no trabalho. Durante o fim de semana, veste branco no terreiro. Dandara Araújo de Souza, 25, há quatro renasceu para seu pai Obaluaiê no candomblé Ketu.

Dandara atua como supervisora na farmácia em que trabalha há três anos, ajudando e instruindo clientes com medicamentos. Por coincidência (ou não), ela é filha do orixá da saúde e da cura. Para Dandara, a ciência e a fé podem caminhar muito bem lado a lado: 

 

A gente não pode deixar de ter fé, mas também não pode deixar de cuidar do nosso lado material. Nem tudo é espiritual e nem tudo é só material” afirma e faz uma comparação com os remédios com que lida no dia a dia  para explicar: “Não tem como você só se tratar hoje  a base de chá e não tomar o seu Losartana – remédio para controlar a pressão arterial – da pressão, porque você vai passar mal.

Juventude e trabalhos

Existe um ditado iorubá que diz: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. O ditado fala, principalmente, sobre a capacidade da força ancestral de reinventar e atravessar o passado e a história. Exu, no caso, é um dos principais orixás do candomblé, divindade de origem africana, que tem o papel de mensageiro entre os seres humanos e as divindades

As religiões de matriz africana, trazidas ao Brasil através dos africanos escravizados, ganham novo sentido e perspectivas no século XXI ao serem resgatadas por jovens que decidiram se conectar ao sagrado. Essas religiões — que incluem umbanda, candomblé, tambor de crioula, jarê e outras — são praticadas principalmente por jovens. Apenas 2% dos umbandistas e candomblecistas possuem 60 anos ou mais, segundo dados da pesquisa Datafolha, de 2020.  

32% dos praticantes de religiões de matriz africana têm entre 16 a 24 anos, tornando candomblé, umbanda e outras religiões afro-brasileiras as mais “jovens” entre as formas de fé do nosso país. Segundo a mesma pesquisa DataFolha, mais da metade dos evangélicos entendem o candomblé e a umbanda como uma religião com valores totalmente diferentes dos seus.  As religiões evangélicas são as que mais crescem no país.

Para muitos jovens profissionais de axé, inclusive, a sabedoria ancestral dos terreiros é uma ferramenta nos desafios do dia-a-dia de trabalho, como explica o professor universitário Rennan Piedade:

“Essa noção egbé (sociedade ou grupo) que a gente trata de comunidade, ela é uma sala de aula. Não tem nem como descolar uma coisa da outra na minha vida”. Para o educador, é fácil relacionar os dois espaços; unir suas duas paixões: o candomblé e a educação. “Entendo a sala de aula como uma roda, entendo o texto que está sendo lido como uma cantiga que precisa ser sentida por todos”, conta Renan.

O Data_labe conversou com quatro jovens candomblecistas, de origem periférica, para entender como essas religiões os ajudam a lidar com o preconceito e a intolerância no ambiente de trabalho.

Fé na ciência e nas palhas de Obaluaiê

“Desde pequena fiquei encantada com os orixás, com com a parte bonita que muita gente não conhece por só ver o lado obscuro que eles acham que [a religião] tem”, conta Dandara Araújo de Souza, que conheceu a o candomblé através de sua mãe, que tem o cargo de  mãe de santo.

Apesar de viver na Zona Oeste do Rio de Janeiro, um dos estados com o maior índice de crimes de intolerância religiosa do Brasil segundo dados do Disque 100, a jovem conta que não tem problemas em falar sobre sua fé no ambiente de trabalho. Quando é necessário seu recolhimento para suas obrigações religiosas, seu pedido é acolhido e respeitado. 

Ao contrário de Dandara, muitos não puderam contar com o respeito no dia a dia: segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), em 2020 no Rio de Janeiro foram registradas 1.355 ocorrências de crimes que podem estar relacionados à intolerância religiosa, um total de mais de três casos por dia.

Um professor universitário salvo da depressão por Dona 7 Saias

“A religião salvou minha vida”, conta o professor Renan Piedade de  sua mesa de trabalho, decorada com vela acesa e uma estatueta do orixá Ayrá — divindade específica do candomblé relacionado ao vento ao seu lado.

Aos 27 anos, ele é professor na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre em estudos da linguagem e doutorando em letras na mesma instituição e pesquisador. Aos 25, Renan lidava sozinho com a depressão severa e a sobrecarga de ser quem era. 

Assim como ele, diversos jovens negros também enfrentam a depressão e ideação suicida   no Brasil. Segundo uma análise feita pelo Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social com base em dados do DATASUS, a cada 10 jovens que cometeram suicídio no Brasil em 2016, 6  negros. 

A história de Renan sofreu uma reviravolta em abril de 2019 quando ele conheceu sua pomba gira – entidade espiritual feminina – Dona 7 saias: “Eu passei por um processo de cura ali, a cura da alma através dessa senhora”

Após atravessar esse processo, em 2019, o professor decidiu se iniciar para o orixá: “Ayrá foi a calmaria que faltava em minha vida, a tranquilidade que eu precisava”, explica. Logo após esse processo, Renan se viu de volta às salas de aula e precisou encarar olhares maldosos e curiosos durante seu “período de kelê” (momento onde o iniciado precisa permanecer de branco, com restrições e processos específicos), no entanto, a força e importância daquele momento sobressaíram ao preconceito. 

“Esse assunto era tolhido, todos sabiam da minha religião mas na minha prática diária isso não podia ser uma pauta.”, conta o pesquisador. 

Segundo o Censo IBGE de 2010, o candomblé, a umbanda e outras religiões afro-brasileiras possuem o maior índice de pessoas autodeclaradas pretas assim como Renan, chegando a 21,7% dos seus praticantes, quase 15% a mais que o índice no catolicismo. Segundo o doutorando, a religião fez parte do seu processo de conscientização e entendimento racial.

A mão que bate a continência é a mesma que toca o atabaque 

Quando questionado sobre o que o fez permanecer no candomblé, Reinaldo Júnior, 20, soldado da aeronáutica, define: “A sensação de estar em casa, de se encontrar, de ter liberdade, de estar à vontade”. 

Ele que é ogan, ou kambondo – como é chamado seu cargo na Nação Angola, a qual ele faz parte – diz que sempre sonhava com sons de atabaque e cantigas e que quando chegou ao terreiro pela primeira vez, reconheceu todos os sons que ouvia em seus sonhos. Reinaldo explica que diferente das pessoas que passam pelo processo de incorporação, os kambondos ou kotas não “recebem” entidades, mas possuem um cargo importante dentro da religião. 

Na nação Angola, ao invés de orixás são cultuados nkises, forças da natureza que regem a vida na Terra e é Bambulusena – nkise associada ao vento, ao ar e frequentemente relacionada a orixá Oyá – quem ocupa a função de mãe espiritual na vida de Kambondo Reinaldo, como é chamado em seu terreiro. 

O jovem que passou nove anos de sua vida em igrejas evangélicas, sonhando em se tornar pastor, conta que foi um choque para todos em seu entorno a sua decisão de se tornar adepto ao candomblé e que nesse momento conheceu o preconceito dentro e fora das instituições militares. Foi através de uma foto nas redes sociais que a informação chegou aos seus conhecidos: “Um sargento salvou a foto e começou a mostrar para todo mundo, de certo modo virou um tipo de perseguição”, conta. 

Foi um período difícil, principalmente por conviver com piadas e insinuações que iam desde apelidos maldosos até palavras pesadas: “Diziam que eu ia pro inferno, que matávamos bichos, que Jesus estava me esperando e que eu era macumbeiro”, desabafa. Ele conta que por sua posição na hierarquia do exército, não é possível que ele se imponha, mas entende que o racismo religioso é algo cultural e prefere não se abater diante das críticas.  

Em dezembro de 2021, o jovem irá passar por um rito importante em sua trajetória espiritual: o ritual de confirmação – ou feitura de santo- onde ele renascerá para sua mãe, Bambulusena. O soldado compreende que sua vivência no passado, como o ingresso no militarismo, o preparou para o momento em que chegou ao terreiro: “Saber se calar quando alguém mais antigo está falando, sentar para aprender antes de ensinar”, exemplifica.

“Vocês fazem mal para as pessoas?”

“Amor, caridade, paixão e tudo de bom”, são essas palavras que definem o que é o candomblé, segundo Ryan Assis, 19. Filho de Oxóssi (orixá associado à caça e a fartura, também conhecido como Odé), iniciado para o orixá desde janeiro de 2020 e jogador do Parque Ipanema Futebol Clube, Ryan lamenta a ausência de mais jogadores de futebol que assumam as religiões de matriz africana.

Ryan é um grande admirador de Paulinho, camisa 7 da seleção olímpica brasileira, e candomblecista assumido: “Acho que se tivessem mais pessoas com sucesso no futebol fazendo isso, seria uma representatividade muito grande para nós”, diz. Paulinho viralizou recentemente ao agradecer Exu por ser convocado para os Jogos Olímpicos em Tóquio e por reproduzir o gesto da flecha do orixá Oxóssi ao comemorar um gol feito nas Olimpíadas.

Já Ryan, jogador do Parque Ipanema, conheceu a religião através de sua família que é formada por praticantes e conta que percebe o ambiente do futebol como majoritariamente cristão e que por isso, existem muitas falácias sobre religiões de matriz africana no dia a dia: “Já me perguntaram se o candomblé faz mal para as pessoas se eu faço mal para as pessoas, aquilo me chateou muito”, desabafa. Ryan combate o preconceito com informação: “Tento passar as coisas boas que eu vivo na religião, que é uma coisa linda, e espero que eles me deem ouvidos”, conta o boleiro. 

Esta reportagem foi produzida em parceria com Uol Ecoa e também está disponível no link.

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