SÓ FORÇA

A trajetória de mulheres da Maré pelo precário sistema penitenciário do país.

reportagem
Jéssica Pires
Juliana Sá

arte
Ana Clara Tito

fotos
Karina Donaria
Amarévê

colaboração
Fernanda Távora
Pedro Lira
Thiago Ansel

agradecimento
Caio de Freitas Paes
Guilherme Belarmino

“Em três horas eu faria cinco mil reais. Você trabalha o mês inteiro e não faz nem metade disso”. Essa foi a proposta tentadora que levou Dandara* a aceitar o serviço de transporte de drogas. Cria do Complexo da Maré, onde vive até hoje, ela se divide entre o trabalho de manicure e a criação de duas filhas. No final de 2015, Dandara foi presa com mais duas pessoas na Região dos Lagos (RJ) transportando munição e drogas. Segundo ela, o serviço renderia, em menos de um dia, bem mais que o valor mensal recebido no salão onde trabalha atualmente. “Foi para isso: dar o sustento. Porque as minhas filhas não têm pai, sou eu sozinha”, conta.

Dandara lembra que a entrega foi combinada por conversas no Whatsapp e que, mesmo com o cuidado necessário para o trabalho, havia algo errado: “Foi dado. Foi emboscada mesmo. Já tava tudo combinado”. O carro usado no transporte era um ônus para o serviço, já que a placa do município do Rio de Janeiro identificava que os ocupantes do veículo não eram da região. A ansiedade aumentou quando quem receberia as drogas demorou a revelar o ponto de encontro.

Depois de passados alguns minutos do horário combinado para a entrega, Dandara recebeu uma mensagem de quem supostamente compraria o carregamento, com a indicação do local. Então, o grupo foi surpreendido por um carro da polícia militar. “Na hora que a gente ligou o carro, a polícia já enquadrou, gritaram ‘pode passar a entrega’”, lembra.

A partir daí foram três horas de negociação de propina com os policiais. “Eles pediram R$ 20 mil, só que o dinheiro sairia da Maré, então não daria tempo de eles pegarem, porque mudaria de turno antes disso”, revela. Sem acordo firmado, Dandara conta que foram recolhidos os itens pessoais de todos que participavam do transporte, incluindo celulares. “Sem forma de entrar em contato, fomos levados para a delegacia.”

Apesar de já ter participado do esquema de transporte de drogas e munições, essa foi a primeira vez de Dandara como responsável pela entrega. “Não acho justo roubar um trabalhador que tem um celularzinho de 500 reais e pagou em 20 vezes. Então como ‘mula’ eu simplesmente tô levando uma coisa para quem tem dinheiro para pagar e está comprando porque quer”, observa.

Com 41,087 mil presas em penitenciárias, as brasileiras compõem a quarta maior população feminina encarcerada do mundo, segundo dados do Infopen Mulheres 2016. Em dez anos, a população feminina privada de liberdade quase triplicou, com um aumento de 146%, enquanto a masculina cresceu 78%. Em 2006, o total de presos no sistema penitenciário ou em carceragens de delegacias brasileiras era de 401,2 mil. Desses, apenas 4,3% (17,2 mil) eram mulheres. Já em 2016 as mulheres correspondiam a 5,8% (42.355) do total de pessoas privadas de liberdade (726.712).

Tereza*, 32 anos, é moradora da Maré e mãe de três meninas. Em 2011, seu marido foi condenado a 22 anos de prisão por latrocínio. Durante os sete anos em que ele cumpriu pena na Cadeia Pública Joaquim Ferreira de Souza, Tereza perdeu o apoio da família e teve que garantir o sustento das filhas sozinha. Um dos caminhos indicados pelo esposo para conseguir renda foi o transporte de drogas. De dentro do presídio, ele articulava as entregas para a mulher fazer na pista, com uma condição: o trabalho deveria ser feito longe das casas de detenção.

Mesmo buscando outras alternativas, como “bicos” e colaborações dos vizinhos, Tereza sentia grande dificuldade para sustentar as crianças sozinha. Em um dos vários  momentos de angústia, topou o convite feito por uma desconhecida na fila de entrada da cadeia. “Posso falar com você? Está a fim de ganhar mil reais agora?”. A missão era entrar com 80g de cocaína, e lhe renderia uma quantia significativa naquele período. Apesar do receio, aceitou.

De acordo com os relatos de Tereza, a mesma mulher que lhe ofereceu o serviço, a delatou para o agente penitenciário responsável pela seleção de quem deveria passar pelo scanner naquele dia. A acusada acredita que essa é uma estratégia utilizada para desviar a atenção dos agentes para que outras mulheres consigam entrar com drogas sem serem notadas. Tereza foi detida em flagrante por porte da droga e ficou privada de liberdade durante seis meses na Cadeia Pública Joaquim Ferreira de Souza, também no Complexo Penitenciário de Bangu.

O dado que mais chama atenção no perfil das privadas de liberdade é o percentual de mulheres respondendo por tráfico: 62%, no último levantamento do Infopen, de 2016. Esta é uma tendência que tem se consolidado na última década, a partir da entrada em vigor da lei de drogas (PL 11.343), em 2006. A nova legislação surgiu para substituir a lei 6.368, de 1976, criada ainda durante o regime militar, e que penalizava em até dois anos de exclusão o usuário. Na lei atual, a diferença entre traficante e usuário se tornou mais explícita em relação à punição – a condenação mínima para o crime de tráfico aumentou, passando de três para cinco anos de exclusão, enquanto a condenação máxima seguiu em 15 anos de pena. No entanto, os critérios práticos para a definição de quem é um ou outro – como, por exemplo, a quantidade da substância – não foram definidos com precisão.

“Um dos efeitos indesejados – ou talvez desejados – dessa lei foi o aumento incrível do número de presos por tráfico”, nota Luciana Boiteux, professora de direito penal da UFRJ e pesquisadora de justiça penal, encarceramento feminino e lei de drogas. Segundo relatório da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, após a nova lei, o número de pessoas presas por associação em áreas dominadas pelo tráfico aumentou, mas as investigações não aumentaram proporcionalmente.

Das 3.679 sentenças relacionadas à lei de drogas na Cidade do Rio de Janeiro e Região Metropolitana, em 54% dos casos o depoimento dos policiais foi usado como principal prova. Os dados são do relatório da Defensoria Pública e compreendem o período de 1º de junho de 2014 a 30 de junho de 2018. A súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio estabelece que o depoimento do policial é suficiente para condenação criminal. Ainda entre as 783 pessoas condenadas por tráfico e associação por tráfico, 75% do casos teve como justificativa dada pelo juiz o fato de a área onde houve o flagrante ser dominada por grupos criminosos.

Corpos desviantes

Quando Tereza foi presa, a primeira pessoa notificada foi seu marido. Assim que ficaram frente a frente, a primeira atitude dele foi questionar o acontecido. “Porque tu fez isso, cara? Não tinha necessidade. Eu sempre falava pra você fazer as coisas lá fora, aqui dentro não, que ia arriscar sua vida”. Nos três meses seguintes à prisão de Tereza, ele escrevia cartas e pedia para que sua família as enviasse para ela no presídio. De todas, Tereza destaca uma em que o marido mencionou que a amava e a perdoava, mesmo ela tendo aceitado o transporte de drogas na penitenciária.

Segundo a assistente social Lidiane Malanquini, para os homens, a entrada no sistema penitenciário é analisada sob o ponto de vista ético pela sociedade. Já o julgamento feito às mulheres, tanto as encarceradas quanto as que compõem a rede de apoio de pessoas privadas de liberdade, é atravessado pela questão moral. Além de responderem efetivamente por crimes, elas ainda carregam a sentença por frustrarem uma série de expectativas sociais.

“A família fica muito chocada quando a mulher é presa. Existe uma série de julgamentos morais sobre ela, principalmente se tem filhos. É construída socialmente uma identidade segundo a qual a mulher é criada para cuidar. Quando você é presa, não tem a possibilidade de cuidar dos seus filhos. Quando você volta, é como se a sociedade te cobrasse. Já com o homem preso, ninguém o cobra”, reflete a assistente social, com base em sua experiência na Maré.

Lidiane trabalha há dois anos no projeto Maré de Direitos, da Redes de Desenvolvimento da Maré. A iniciativa é, como descrita, um “balcão de direitos” que atende demandas jurídicas de moradores das 16 favelas do complexo. Ela destaca que desde o início do Maré de Direitos muitas mulheres procuraram assistência jurídica para filhos e companheiros; no entanto, há pouquíssimos registros de homens demandando os serviços do projeto para uma mulher.

Viabilizar o direito à defesa também é algo que torna-se demanda das famílias das detentas, ou seja, é uma responsabilidade que recai sobre outras mulheres. “Você não sabia que iria ser presa, não foi programado”, lembra Dandara, a manicure detida em 2015 por transporte de drogas. É preciso reunir documentos – como certidões, comprovantes e uma série de detalhes burocráticos -, operação para a qual a Defensoria Pública não tem efetivo suficiente.

À base de calmante

“Dentro dos presídios, itens comuns tornam-se artigos de luxo”. As palavras de Dandara são significativas da necessidade de apoio externo para garantir direitos básicos, como saúde e higiene, às mulheres. A garantia dessas condições fica por conta da rede de apoio da pessoa encarcerada. Essa rede, em sua maioria, é formada também por mulheres – sejam elas mães, esposas, parentes ou amigas.

Dandara passou dois meses com uma única muda de roupas, sem escova de dentes, creme dental ou absorvente, além de acesso restrito a água e sabão. Já Tereza recebeu um kit de cinco absorventes, um rolo papel higiênico e um sabonete, para corpo e roupas, que deveria durar um mês. Essa realidade só mudou para elas quando tiveram direito às “custódias”, que funcionam como uma permissão para familiares levarem itens de higiene e alimentação para as presas.

Mesmo recebendo ajuda dos familiares, a alimentação era uma das necessidades que as duas não conseguiam suprir bem no dia a dia. Tereza chegou a encontrar pedaços de barata nas refeições servidas. “Quase sempre [a comida] vinha estragada. Ao ponto da gente abrir e vir aquele cheiro. Eu só vivia à base do café da manhã e do lanche da tarde, que era um guaraná natural e um bolinho”, relembra.

“Nos primeiros meses vivia da ‘etapa’ – um pãozinho suíço, uma dose de café e uma dose de leite. Como eu não bebo café, nem leite, às vezes eu comia o pão, porque não aguentava de fome. Os meses que eu fiquei sem visita, eu não conseguia comer. Quando vinha mais ou menos, eu comia por cima, só para ingerir alguma coisa de sal, mesmo chorando, só para não morrer”, compartilha Dandara.

Exames básicos, tais como preventivos ginecológicos, foram relatados como um direito inexistente nas prisões. A realidade não condiz com a norma do Ministério da Saúde que garante a realização de pelo menos um exame anual para mulheres, sejam elas privadas de liberdade ou não. Numa tentativa de regularização, em 2014 a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro buscou garantir, através de determinação do Tribunal de Justiça, um médico geral e um ginecologista para cada unidade prisional do estado. A medida ainda não foi colocada em prática: o Rio de Janeiro segue sem registro de profissionais de saúde no cadastro do Infopen.

A negação de direitos, como atendimentos médicos e uma alimentação adequada, não afeta apenas o corpo da mulher, mas também influencia sua condição psicológica. “Até hoje vivo à base de calmante, porque eu deitava pra dormir e tinha medo de alguém querer fazer uma maldade comigo. Ficava andando a noite toda, pra lá e pra cá. É por isso que as pessoas falam que é difícil você entrar no presídio e sair uma pessoa tranquila. Isso mexe muito com o psicológico”, conta Tereza. Esse fator negligenciado dentro do sistema acaba deixando marcas para a vida da mulheres fora dele. Dandara, assim como Tereza, é mais uma ex-detenta que faz uso constante de remédios controlados.

Segunda Ana Lúcia Torres, defensora pública que atua nos presídios femininos, quando um homem sofre punição disciplinar, instaura-se um procedimento. Se ele for condenado, o privado de liberdade é punido segundo as ações previstas na legislação. No caso das mulheres, quando há um problema disciplinar, normalmente elas são encaminhadas ao psiquiatra; depois, passam a ingerir medicação controlada, mesmo quando não há antecedentes dessa natureza antes da prisão.

“Isso é uma coisa muito preocupante, porque você tem uma psiquiatrização do sistema prisional e da questão da criminalidade feminina. A mulher que comete crime é vista como um caso de problema mental e o homem, não. Você não vê um preso que vai para o isolamento e recebe remédio psiquiátrico. Mas a mulher, normalmente, quando vai para o isolamento, o psiquiatra  logo dá uma droga pra ‘acalmar’. Isso vem do século 19, mas ficou na estrutura”, comenta Ana Lúcia.

Atualmente, apenas o Hospital Penal Psiquiátrico Roberto de Medeiros está capacitado a receber mulheres privadas de liberdade com questões psiquiátricas no Rio de Janeiro. A instituição, contudo, é mista: atende a 14 mulheres e 42 homens no mesmo espaço, segundo o último relatório do Infopen. Veículos como Intercept Brasil, Ponte e a revista AzMina produziram matérias sobre a precariedade da saúde mental da população carcerária feminina utilizando dados do relatório.

Uma perspectiva de gênero sobre o sistema prisional, principalmente levando em conta a saúde das mulheres quando estão grávidas, é um dos apontamentos feitos por Luciana Boiteux. “Existe toda uma dinâmica de opressões e violações de direitos que essa mulher passa. Ser algemada no parto, demorar a ser transportada para maternidade, não conseguir amamentar: são questões de mulheres”.

A maternidade na prisão é chamada de “hipermaternidade” – quando a mulher fica de seis meses a um ano em contato direto e único com o bebê, exercendo exclusivamente o papel solo de mãe, 24h por dia. Após esse período de amamentação, existe uma ruptura – é quando ela deve ser separada do filho. “Se ela tem um familiar, a pessoa vem buscar o bebê. Mas e se ela não tem quem busque a criança? Aquela mulher sabe que vai perder o filho para um abrigo e, se não tiver um processo, pode nem conseguir recuperá-lo”, inclui Luciana.

A possibilidade de perder o contato com os filhos também é uma realidade das mulheres-mães antes de entrar no sistema penitenciário. “Essas mulheres são chefes de família responsáveis pela casa, pelos filhos, pelo dinheiro que entra no lar. Um homem preso desestrutura a vida familiar, mas quando você prende essa mulher, você ‘puxa o tapete’ da família inteira. É muito mais radical, a ruptura é muito mais profunda”, conclui Ana Lucia Torres. Excluídas do convívio familiar, essas mulheres perdem não só a ligação com o mundo exterior, mas toda a rede de apoio que existe fora da cadeia e o contato com os filhos.

Carolina Haber, diretora de pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, destaca também como o julgamento moral contribui para que a entrada no sistema seja quase uma separação definitiva entre elas e seus filhos. “Existem muitos processos que tiram a guarda dessa mulher de forma arbitrária, o que não deveria acontecer. Elas não deveriam perder a guarda de forma definitiva. Em muitas vezes, a guarda é retirada dessa mulher e colocam os filhos para a adoção. Se ela tem a sorte de ter um parente próximo que possa cuidar desses filhos, ótimo; se não, é bem difícil”, explica. Dandara, a personagem que abre esta reportagem, ficou sem notícias sobre as filhas, menores de idade, durante dois meses quando foi presa. A manicure, que mora sozinha com as duas crianças, teve ajuda do pai, que cuidou das netas durante o período.

Mulher de bandido: a pena social

A rede de apoio é fundamental para a garantia de parte dos direitos dessas mulheres dentro do sistema prisional. Contudo, as pessoas que fazem parte dessa rede também sentem os reflexos do sistema. São mães, companheiras, tias e irmãs que enfrentam, além do trajeto, das longas filas e das revistas invasivas ao entrar nas cadeias, o preconceito e o abuso de poder de autoridade que as enxerga também como criminosas.

Mesmo com a gravidez avançada, Maria Filipa* seguia a rotina de preparar a quantidade de comida que fosse possível transportar para o marido. “Mas eu vou porque, né? Se eu não for, quem vai?” diz a jovem, que aos 26 anos vive a realidade das visitas, pelo menos uma vez por semana, desde 2015. Aos 16 anos conheceu R., que atualmente cumpre pena por tráfico. Durante a prisão do namorado, Filipa, mesmo grávida, revela que não recebeu prioridade na fila para ver o companheiro. Hoje, continua a se deslocar semanalmente da Maré, na zona norte, para Bangu, na zona oeste, onde fica o principal complexo penitenciário do Rio de Janeiro, enfrentando os 16 quilômetros de distância, incluídos transporte público e caminhada.

Filipa repete algo dito por todas as mulheres ouvidas pelo data_labe: por extensão, a postura de agentes penitenciários intimida e penaliza namoradas, esposas, mães e irmãs. “O desrespeito acontece todos os dias, todas as semanas que a gente vai. Porque para os agentes, como os presos são criminosos, nós somos também”, observa. Argumentar, nem pensar. “Se falar alguma coisa eles respondem que lá é cadeia. Se fosse em uma praia ou em um shopping, a gente não estaria reclamando, então por que lá estaríamos? É regra, tem que aceitar”.


Filipa* se prepara para a visita ao marido, preso desde 2015. O ensaio é de Karina Donaria do Coletivo Amarévê.

Não é só pelo mau tratamento durante as visitas que elas pagam penas como se estivessem presas. Para Mônica Cunha, 53, mesmo do lado de fora, essas mulheres vivem uma espécie de cárcere. Em 1991, ela própria passou pela experiência de ter o filho, Rafael da Silva Cunha, com 15 anos à época, sentenciado a cumprir medida socioeducativa no Instituto Padre Severino (atual Dom Bosco), no Rio. “A gente se encarcera porque fica preocupada de como é que esse filho come, dorme, de como acorda. Então não conseguimos viver enquanto nossos filhos estiverem nesses lugares”, diz a mãe.  

Sobre as filas, “vários constrangimentos” – lembra. “Os próprios agentes ficam rechaçando, chamando a gente de ‘mães de bandidos’”. Ainda de acordo com Cunha, o pior eram as  revistas. “Ter que ir para aquele lugar, ficar nua, dar três pulinhos, mostrar o corpo para quem a gente não pediu, para quem não queremos, é uma violação horrorosa”, lamenta.

A mãe de Rafael fundou, em 2003, o Movimento Moleque, de defesa de direitos de adolescentes autores de ato infracional e suas famílias. Uma das conquistas da organização formada, segundo Mônica, por mulheres nas filas de estabelecimentos de cumprimento de medida, foi justamente o fim da chamada “revista vexatória”. Reincidente por quatro vezes, Rafael foi assassinado aos 20 anos, cinco anos após sua primeira prisão, em um confronto com a polícia.

“Não existe Ressocialização”

Para essas mulheres, sair da cadeia não significa que o julgamento acabou. Em muitos casos, a mulher sai sem ter tido qualquer tipo de contato com o mundo do lado de fora durante o tempo em que ficou no sistema penitenciário. Lidiane Malanquini, comenta que este grupo é visto como “sujeitos desviantes” – mulheres que não se encaixam no papel que a sociedade impôs a elas: recatada, do lar e, em sua grande maioria, mãe. “Este processo de retorno para a casa é marcado por um julgamento moral muito forte para as mulheres. Mais forte do que para os homens”, diz.

No âmbito jurídico, a ressocialização está ligada aos métodos que o sistema penitenciário utiliza para garantir que a pessoa privada de liberdade se reintegre à sociedade, voltando a desenvolver suas atividades e também a um equilíbrio emocional e de convivência. Esses métodos devem incluir formações profissionais, o acesso à cultura e à informação, acompanhamento psicológico, entre outros. Geralmente são feitos em parceria entre o sistema penitenciário e entidades como associações comunitárias, organizações não governamentais, empresas e igrejas.

As narrativas das personagens contradizem a realidade e o conceito desses métodos. “Ressocialização não existe. Porque falam: ‘vai preso, tem ressocialização, escola, tem curso’. Não tem, não existe isso! A escola até está lá, mas é tipo assim, cinco vagas para 50 pessoas. Então ou você aprende com o sofrimento todo que passou lá dentro, ou você sai pior.” revela Dandara.

A mareense revela que existe uma enorme dificuldade em recomeçar a vida. “Quando seu alvará chega, você assina um papel de que está liberada e rua! Não querem saber se você tem dinheiro de passagem, se vai sair e ter uma assistência social, saber se a sua família vai te acolher de novo. É por isso que muitas pessoas voltam”, conclui.

***

Falar de ressocialização quando se trata de sistema penitenciário implica, necessariamente, em refletir sobre o próprio objetivo do aprisionamento em massa característico da sociedade brasileira. As mareenses entrevistadas por nós são todas mulheres negras que vivem em condições socioeconômicas precárias, são moradoras de um território estigmatizado e negligenciado pelo Estado.

O perfil delas corresponde à maioria das mulheres que passam por alguma relação com o sistema penitenciário. Nossa aproximação se deu de forma cautelosa. A dificuldade em expor a própria figura para falar do assunto é um claro sintoma da farsa do discurso da ressocialização. Encarar este sistema como falho às vezes não nos deixa olhar para um objetivo que parece primordial para a lógica de encarceramento: o controle dos corpos pobres e essencialmente negros.

***

*Os nomes das personagens não corresponde à realidade e foram tirados do livro “Heroínas Negras Brasileiras”, de Jarid Arraes.

Participaram desta reportagem a equipe data_labe: Clara Sacco, Eloi Leones, Gilberto Vieira e Juliana Marques.

Esta reportagem foi desenvolvida entre abril e julho de 2018, durante a primeira temporada de residências do data_labe com apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos. No canal do medium relatamos a experiência da residência.

Referências:

http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea468d9df83d0913fa8a96.pdf

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm

https://www.geledes.org.br/17-mulheres-negras-brasileiras-que-lutaram-contra-escravidao/

http://www.defensoria.rj.def.br/busca/sistema+penitenci%C3%A1rio

http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/7a75f9b7bfcb4cecb5e79b8f1c26c92b.pdf

http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=25590

http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_criminal.pdf

http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/3917-Estado-tera-que-fornecer-

http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres

 

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