ONDE O RIO É MAIS PODRE

Poluição nos afluentes do Guandu reflete descaso nacional no saneamento básico.

reportagem
Gabriele Roza

arte
Giulia Santos

foto / vídeo
Eloi Leones

Despejo de esgoto nos afluentes do Guandu desencadeia uma série de problemas de saneamento para a população periférica do estado do Rio.

A água na casa da Karina Guirá da Silva, moradora do bairro Roncador no município de Queimados, nunca chegou própria para consumo. Ferver e filtrar a água é o cotidiano dela e dos vizinhos. Na tentativa de conseguir água potável, os próprios moradores se organizaram para instalar uma ligação até outra região, ‘‘mas é muito difícil cair’’, diz ela. A sorte de Karina é ter um poço no seu quintal que não deixa a água faltar por muito tempo. ‘‘Não sabemos muito bem se é boa a condição dessa água, mas não tem outro jeito, temos que beber essa mesmo porque a que está vindo da rua é muito suja, com um cheiro horrível, quando vem, quando tem’’, conta. ‘‘Graças a Deus a gente tem o poço, mas tem gente que não tem e vem pegar água aqui’’. 

Karina Guirá, moradora do bairro Roncador, precisa ferver e filtrar a água que chega até sua casa.

Desde o começo do ano, a população do Rio de Janeiro experimenta parte da rotina que a Karina leva por falta de um abastecimento adequado de água. Água com cor, gosto e cheiro de terra foram percebidas por moradores da Zona Oeste a Zona Sul da cidade. A justificativa que a Cedae deu para água poluída foi a contaminação por geosmina, uma substância produzida por algas. Pesquisadores explicam que para se proliferar, a geosmina precisa de condições específicas, uma delas são nutrientes encontrados no esgoto doméstico. Ou seja, o despejo in natura de esgoto nos principais afluentes do Rio Guandu, que abastece a região metropolitana do Rio, é um dos determinantes para a poluição da água que sai na torneira. Não por acaso, os dados de tratamento de esgoto nos municípios que estão no entorno desses rios são tão ruins quanto os dados de qualidade da água dos rios. 

Dentre os cinco principais afluentes, o Rio Queimados, localizado no município de Queimados, apresenta o pior índice de qualidade da água (20, em uma escala de zero a 100, onde 90 a 100 é excelente e zero a 25 é muito ruim). Em relação ao índice de Tratamento de Esgoto, Queimados empata com Paracambi e Japeri. Segundo os dados de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), ambos os municípios não tratam nenhum % do esgoto gerado.

Além do problema de abastecimento de água, moradores de Queimados são afetados diretamente com a falta de coleta e de tratamento adequado de esgoto no município. Karina conta que por falta de uma estação de tratamento, o esgoto vai direto para um valão aberto que fica em uma rua perpendicular a sua. O contato próximo com o esgoto deixa a população vulnerável a diversas doenças. ‘‘Por aqui todo mundo teve chikungunya, se foi dois, quatro no máximo que não teve. Aqui em casa todo mundo teve, a única que não teve foi a bebê porque a gente correu pra encher ela de repelente’’, diz Karina. 

Na semana passada, o jornal O Globo divulgou um estudo da Universidade de Lund, na Suécia, que descobriu que a geosmina que foi encontrada na água da Região Metropolitana, tida até então como inofensiva, estimula a proliferação do Aedes aegypti mais que qualquer substância no mundo. ‘‘Mesmo que a água tratada pela Cedae deixe de ter cheiro de geosmina, devido à aplicação de carvão ativado, o esgoto que contamina os mananciais de onde ela foi tirada continuará a ser uma fonte em potencial de proliferação do mosquito transmissor de dengue, zika e chikungunya’’, explica a pesquisadora sueca Nadia Melo, autora principal do trabalho, para a reportagem do Globo.

Moradores de Queimados contam o que passam com a falta de saneamento básico no município.

Em Queimados, não faltam histórias de chuvas que causaram enchentes na cidade. ‘‘Em 2013, nós tivemos uma enchente que a gente passou com água na cintura. A rua principal ficou um corredor de móveis, tinha geladeira, tudo que você pode imaginar que tinha numa casa foi pra rua, teve que ser interditada. Muitos moradores perderam tudo, estava próximo do Natal e isso marcou, ficou marcado’’, diz Priscila Botelho, moradora do bairro Paraíso. 

A falta de tratamento de esgoto e de um sistema de drenagem de águas pluviais faz com que, em períodos de chuva forte, o esgoto volte para a casa das pessoas. Jorge Peixoto, morador e ativista em Queimados, explica que em 2013 as galerias de escoamento de água ainda eram da fundação da cidade, em 1990, ‘‘a cidade cresceu muito, você imagina uma cidade que tinha um certo número de habitantes e depois triplicar, quadruplicar e usar a mesma galeria, a mesma forma de escoamento pros rios. Isso foi insustentável e em 2013, o volume de água era imenso e o escoamento era mínimo, então houve essa tragédia’’.

Valdemir do Nascimento Cunha, 62 anos, é prova de que os problemas de saneamento básico se acumularam ao longo dos anos em Queimados. Ele conta que quando criança costumava  brincar e nadar nos rios próximos de casa. ‘‘Isso aqui era meu quintal, a gente brincava aqui, a gente nadava nesse rio. Não tinha problema nem se bebia a água, não tinha esgoto aí dentro. Depois sim, com essa expansão das casas ficou complicado pra caramba os rios.’’ 

Quando criança, Valdemir do Nascimento, 62, nadava nos rios que hoje estão  poluídos.

Apesar de não ter esgoto tratado, Queimados tem 13 estações de tratamento de esgoto, mas estão todas paralisadas. Em entrevista para o data_labe, a secretária de meio ambiente de Queimados, a vereadora Gabriela Chernicharo, disse que as estações ainda não foram licenciadas. ‘‘Quando cheguei aqui na secretaria há sete meses, tinha uns processos das estações de tratamento de esgoto. No município são um total de 13, mas nem licenciadas eram’’. Segundo Chernicharo, em breve o ‘‘período licitatório para uma empresa ser contratada com a supervisão da pasta’’ vai se iniciar. 

Questionada se o esgoto que não é tratado em Queimados vai direto para os rios que são afluentes do Guandu, a secretaria preferiu não responder: ‘‘Como não é por mim hoje coordenado, é pela Secretaria de Serviços Públicos, eu não posso estar te respondendo isso, eu peguei depois essa briga. A partir da licitação eu vou saber te dar essas informações, hoje eu não posso te dizer porque não é da minha gerência, eu tive que brigar pra vir pra minha gerência’’. ‘‘O secretário de obras que fez a canalização, ele sabe me responder melhor. Eu não fiz, as obras estão prontas’’, argumenta.

Apesar não responder, a secretária acredita que uma das soluções para despoluir os rios é o pleno funcionamento das estações de tratamento de esgoto (ETEs), ‘‘essas 13 ETEs vão ser um avanço gigante. Imagina o esgoto sendo tratado, aí talvez esse cheiro que você sentiu não vai sentir mais ou vai sentir bem menor porque vai ter tratamento’’.

Esgoto não tratado em Queimados é despejado in natura no Rio Queimados, afluente do Guandu.

O problema é nacional

Queimados é apenas um dos municípios no Brasil que enfrenta problemas relacionados ao saneamento básico. Segundo os dados do SNIS, em 2018, apenas 46,3% do esgoto brasileiro gerado foi tratado. Além das doenças causadas pela falta de tratamento de água e esgoto a céu aberto, a falta de saneamento contribui diretamente para a poluição ambiental. Esses números demonstram que grande parte dos esgotos no Brasil vai diretamente para os rios e para o mar.

A falta de saneamento contribui também para a desigualdade social no país. Estudo realizado pelo Instituto Trata Brasil, em 2016 nos 100 maiores municípios do país, constatou que cerca de 90% dos esgotos de áreas irregulares não são coletados e nem tratados. Como em Queimados, os serviços de abastecimento de água não chegam nesses locais. O estudo detectou que nestes 100 maiores municípios parte do abastecimento é fruto de furtos de água.

Desigualdade social também é percebida na distribuição do saneamento no Brasil. No país, a população mais pobre é também a que está mais vulnerável aos problemas ambientais.

No Brasil, o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei nº. 11.445/2007, que atribuem aos prefeitos a responsabilidade da titularidade, fiscalização e regulação dos serviços de saneamento básico nos municípios. As prefeituras podem prestar o serviço ou delegar para companhias estaduais ou privadas.

Para a especialista em saneamento ambiental Iene Figueiredo, professora da Escola Politécnica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a política de saneamento no Brasil contempla de forma macro o que deve ser, mas ‘‘o grande problema é que existe um documento muito importante para que a política seja implementada que são os Planos Municipais de Saneamento. Todo ano é último prazo para a entrega dos planos municipais e todo ano esse prazo se adia’’. O Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) é exigência prevista no Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), promulgado em 2013 pelo Governo Federal. O documento deveria ser elaborado pelas prefeituras de todos os municípios do país como instrumento de planejamento e gestão nos municípios.  Em 2017, o Panorama dos Planos Municipais de Saneamento Básico no Brasil indicou um patamar entre 45 e 48% do total de municípios brasileiros que declararam “Possuir o Plano” ou que o “Plano estava em elaboração”.

A professora Iene explicou que ‘‘só existe dinheiro público pra fazer serviços de saneamento se essas obras estiverem contempladas no Plano Municipal de Saneamento, portanto não há dinheiro da Caixa, do BNDES se não tiver o documento formal, não há obra se ela não for planejada’’, disse Iene. ‘‘Só que o fato de você adiar sempre o prazo limite para que essa regra seja cumprida dificulta’’, explica.

O pesquisador Gandhi Giordano, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Faculdade de Engenharia da Uerj, explica que acaba existindo uma política de repasse de responsabilidade do saneamento: ‘‘Se eu perguntar pro Inea, ele diz que é o município. Pergunto pra Cedae, ela diz que é o município que o dela é só água. O município fala que não tem dinheiro porque quem recebe a conta de água é a Cedae. Por que não fizeram um convênio do esgoto? Não fizeram um convênio do esgoto porque eles não querem investir em esgoto. Querem ficar com a receita e não quer gastar com esgoto, porque esgoto o investimento é maior.’’ 

Para o professor, falta uma discussão séria e mais articulada do assunto. ‘‘As coisas ficam assim, isso aqui não é meu, não tem a ver comigo não, mas agora todo mundo fica sem beber água. Falta gente para articular isso tudo, talvez essa articulação saia se a sociedade pedir. A sociedade começar a colocar isso como uma coisa urgente e séria talvez saia. Mas se a gente achar que só ferver e filtrar vai resolver o problema, não vai. A gente tá precisando mudar a forma de ver esse assunto. O sistema é muito frágil, isso gera um custo que é o custo de saúde da população, a exposição da população’’.

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