PARTO DAS PRETAS

No Rio de Janeiro, parto humanizado ainda é coisa de mulheres ricas e brancas.

reportagem:
Elena Wesley

arte:
Giulia Santos
Nicolas Noel

edição
Fred Di Giacomo

vídeo
Eloi Leones
Patricia Cavalheiro

dados
Estephany Nunes
Paulo Mota
Samantha Reis

Enquanto as maternidades tradicionais do SUS carioca (Rede Cegonha) atendem mais mulheres pretas do que brancas, os números se invertem na Casa de Parto David Capistrano, a única opção de parto humanizado gratuito no Rio de Janeiro. Conversamos com mães, enfermeiras e médicos para entender o rolê que é o atendimento gestacional humanizado para uma mulher preta.

Reza o clichê que em uma sala de parto, numa banheira humanizada, em uma maloca, ali de cócoras, nasce não só uma criança, mas uma mãe (e, em alguns casos, um pai também). Clichês não existem à toa. Romantização à parte, faz seis anos que Vitória Lourenço, 28 anos, trabalha com gênero e saúde reprodutiva, e o nascimento de sua filha tem tudo a ver com tal envolvimento. Foi durante o pré-natal de Sofia que ela soube o que significava o tal do “parto humanizado”. 

“Eu estava indignada com as opções que o plano de saúde havia me dado: era cesárea ou cesárea. Tinha a opção de agendar com antecedência ou esperar pelo trabalho de parto para também passar pela cirurgia. Eu desabafei nas redes sociais, e uma amiga me indicou a casa de parto em Realengo”, conta Vitória.

Embora tivesse frequentado o bairro da zona oeste nos tempos de escola, Vitória não conhecia a Casa de Parto David Capistrano, único equipamento público integrado ao SUS que oferece o atendimento humanizado no Rio de Janeiro. Com 22 semanas de gravidez, a assessora parlamentar se surpreendeu com um acompanhamento diferenciado, que previa atividades educativas e consultas longas e detalhadas, desenvolvido por uma equipe transdisciplinar formada por enfermeiras obstétricas, nutricionista, assistente social e psicóloga. 

“O mais legal da Casa é que se entende o parto como um evento integral para a vida da mulher, que mexe com o biológico, o psicológico, o social. Há uma preocupação em saber se ela tem uma rede de apoio, se a gravidez foi planejada e desejada, qual o vínculo que ela está construindo com o bebê. Do pré-natal até o pós-parto participamos de várias oficinas que orientam desde o aleitamento até a compreensão da sexualidade”.

Embora seja um aparelho público, a Casa de Parto David Capistrano atende muito menos mulheres negras que a Rede Cegonha, que é o serviço público de parto tradicional. Os registros de parto referentes ao período entre janeiro de 2019 e junho de 2020 apontam que enquanto as mulheres brancas representam 14% das mulheres atendidas na Rede Cegonha, o número cresce para 35,6% na Casa de Parto. Em contrapartida, o público de mulheres pretas, que chega a 28,4% na Rede Cegonha, cai para 16,5% na David Capistrano. Mesmo sendo maioria das assistidas pela SUS, as mulheres negras ainda não têm o parto humanizado como uma alternativa acessível. 

Uma política pública mantida a fórceps

O cenário que Vitória encontrou em 2014, no entanto, é muito diferente da realidade atual da Casa de Parto. A equipe está defasada, a estrutura sofre com falta de manutenção, e os profissionais usam recursos próprios para custear produtos. 

“Existe um interesse em sucatear, que não é exclusividade do atual governo, de enfraquecer o SUS como um todo. Tem descarga quebrada, chuveiro sem funcionar… Até os óleos que usamos nas terapias alternativas a gente compra do próprio bolso para tentar manter a qualidade do serviço que a gente acredita ser necessária. A minha impressão é que a Casa vai fechar em breve e que só a mobilização popular poderá impedir isso”, projeta a enfermeira obstétrica Ariana Santos, que trabalha na Casa de Parto David Capistrano e é, também, fundadora do Sankofa, projeto focado em atendimento gestacional humanizado de mulheres negras e periféricas.

Esse não seria o primeiro fechamento enfrentado pela unidade. Em 2009, a Casa de Parto teve que suspender atividades por três semanas, e em 2017, restringir a atuação para consultas. Tudo isso por pressão do Conselho Regional de Medicina, que questiona a ocorrência dos partos fora do ambiente hospitalar e sem a supervisão médica, apesar dos indícios de que o parto humanizado é mais vantajoso para a mãe, para o bebê e para os cofres públicos. 

“Existe um interesse financeiro em impedir a atuação das enfermeiras obstétricas. Os médicos perdem mercado e a facilidade de agendar várias cesáreas em um único dia, quando na verdade o procedimento deveria ser feito somente em casos de emergência. É uma disputa de pensamento também, já que a medicina ainda está um pouco mais engessada do que a enfermagem. Uma ensina a resolver o problema, a outra a cuidar do paciente”, avalia o médico Marcos Augusto Bastos Dias, que chegou a ser perseguido pelo Conselho por apoiar o parto humanizado.

Na linha de frente da luta pela manutenção da Casa de Parto David Capistrano estão as suas principais beneficiárias: as mulheres. O protagonismo feminino teve início já nos anos 2000 quando profissionais de saúde reivindicaram a adoção do parto humanizado no SUS junto ao Ministério da Saúde. Há três anos, durante o último período de acirramento e risco iminente de fechamento, uma nova geração de mulheres pautou a abertura de novas unidades, entre elas Marielle Franco, do PSOL.

Era da vereadora assassinada em março de 2018 a autoria do projeto de lei que estabeleceu a criação, até 2022, de mais cinco casas de parto, cuja localização levaria em conta os IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixos da cidade. O número foi reduzido drasticamente para o plano plurianual do município (2017-2021), que prevê a construção de um novo centro humanizado na Ilha do Governador, na zona norte do Rio, mas às vésperas do fim da atual gestão o projeto permanece no papel.

Seja na sala de parto comum ou nas decisões políticas, as mulheres, especialmente as negras e periféricas, precisam lutar para decidirem por si mesmas como vão seguir gerando vidas. As mudanças parecem estar próximas a nascer, mesmo que a fórceps.

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