reportagem
Breno Souza*
capa
Giulia Santos
infográficos
Redes da Maré
edição
Fred Di Giacomo
Redes da Maré contam a realidade da pandemia na favela a partir de dados comunitários. Números de contaminados, segundo terceiro boletim, pode ser 193% maior do que alega o governo.
As vítimas do avanço da pandemia de covid-19 nas periferias brasileiras não estão corretamente representadas nos dados oficiais divulgados. Montantes de mortos por estado e informações básicas como sexo e faixa etária não dão conta de contar as histórias reais por trás dos números já extremamente subnotificados de contaminados e mortos. Por trás da frieza destes números há milhares de seres humanos, centenas de abraços não dados e realidades diversas que não foram mapeadas. Nesse contexto, surgem iniciativas como a da Redes da Maré, que através de muitos esforços vêm mapeando a incidência do coronavírus num território periférico onde moram mais de 139 mil pessoas.
A assistente social Lidiane Malanquini Magacho, coordenadora do eixo de direito à segurança pública e acesso à justiça da Redes da Maré, está engajada na missão da organização de coletar e visibilizar os dados comunitários de covid-19 na favela: “a Redes da Maré é uma organização que atua há mais de 20 anos aqui no conjunto de favelas da Maré e tem uma série de ações pra pensar como que a gente pressiona o Estado por meio de políticas públicas estruturantes e que impactem na melhoria da qualidade de vida de quem vive aqui. Eu acho que o principal diferencial entre o que a gente está produzindo e os dados oficiais, é que estamos produzindo junto com os moradores a partir de uma ampla articulação com as organizações do território, com as associações de moradores, com os próprios moradores que trazem esses casos e que relatam as dificuldades do acesso aos direitos. A gente vai pra rua, vai em busca desse dado, constrói a importância de visibilizar essas situações junto com as pessoas, o que é diferente um pouco da lógica dos dados oficiais.”
Por trás dos dados subnotificados, estão centenas de pessoas com sintomas, mas que, devido a falta de testes, não são contabilizadas: “Só entra nas estatísticas do governo, por exemplo, quem entra numa unidade de saúde, quem tem o teste garantido. A gente tem ouvido muitas famílias com casos suspeitos que nem se quer conseguem acessar as unidades de saúde, muito menos acessar os testes. Para se ter uma ideia no boletim dessa semana (25), temos 390 pessoas que a gente vem acompanhando nesses dois meses, sendo 305 as que não tiveram a confirmação da doença, ou seja, pessoas que a gente atendeu, que estão com sintomas e que algumas foram orientadas a fazerem um isolamento social [em casa] pelas unidades de saúde. São 305 pessoas que não aparecem nas estatísticas oficiais.”
O boletim mencionado por Lidiane é o “De olho no corona!” que é parte da campanha “A Maré diz não ao coronavírus”. A campanha que é viabilizada a partir de articulações com parcerias institucionais e pessoas físicas, possibilita, a partir do boletim, a existência de um canal com os moradores para acolher pautas sobre acesso a direitos, violações, casos de covid-19 e as condições das políticas públicas no território durante a pandemia. Segundo o terceiro boletim, lançado com dados até o dia 18, a diferença entre os dados oficiais e os dados do boletim era de 193% em número de casos e de 65% em número de óbitos. Ou seja, enquanto a prefeitura contabilizava 89 casos e 23 óbitos, o boletim contabilizava 261 casos e 38 óbitos no Complexo da Maré. No quarto boletim lançado na semana do dia 25, a prefeitura contabilizava 142 casos e não mostrava número de óbitos de nenhum bairro da cidade, enquanto dados da Redes já indicavam 390 casos e 40 óbitos na Maré.
Mais do que números, a edição quatro do boletim “De olho no corona!” apresenta de forma inédita o perfil da população atingida pelo Covid-19 até o momento na Maré. Dos 390 casos suspeitos ou confirmados, 78% não tiveram acesso a testes, 69% são declaradas como pretas ou pardas (perfil considera os 352 casos que tiveram a cor/raça do morador identificada), 66% são mulheres, 59% tem 60 anos ou mais e 46% solicitaram cesta básica à campanha da Redes. Dos 40 óbitos registrados pela Redes 60% são de pessoas pretas ou pardas e 55% são de mulheres. Desigualdades no acesso a leitos hospitalares também são evidenciadas pelo boletim, pessoas pretas ou pardas não são maioria entre as hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), mas são maioria entre o número de óbitos.
Para Denise Pimenta (36), doutora em antropologia social pela USP e que trabalhou com dados qualitativos dos atingidos pelo vírus do ebola em Serra Leoa, em 2017, os dados obtidos de forma comunitária, como faz a Redes da Maré, são muito importantes: “No caso da Maré, se o governo justificar a falta de dados com: ‘não sabemos como chegar nessas pessoas’, os líderes comunitários sabem. Então a geografia da favela é sabida e é traçada pelos que moram ali. São velhos, professores, jovens, estudantes, pessoas que moram e circulam no território. A produção de um dado é feita por muita gente e por muitos saberes. Os dados servem para subsidiar políticas públicas futuras e para que divulguemos que mulheres e homens morreram nas comunidades. Quantos eram pretos e pretas, pardos e pardas? Os dados são muito importante antes, durante e depois.”
Sobre o descaso público que ocorre em relação aos dados coletados dentro das próprias comunidades, Denise explica a existência de um negacionismo por parte das autoridades: “Infelizmente os dados colhidos nas favelas não estão sendo utilizados para o controle da pandemia, o que poderia ser trunfo para contermos a doença. Na verdade, como estamos numa disputa de narrativa em que cientistas, professores e pessoas de comunidade gritam a existência de uma pandemia com muitas mortes, o poder público acaba não dando atenção a essas vozes. Mas pensa comigo: por que eles dariam atenção se eles mesmos estão negando o fato de que existe uma pandemia? Dar a devida importância a esses dados produzidos na Maré, enquanto política pública nacional, é dizer que realmente estamos dentro de uma crise, um evento drástico no Brasil”.
*Breno é colaborador do data_labe no âmbito da parceria com o PPGTU/PUCPR e Durham University em pesquisa sobre ativismo digital e territórios urbanos da margem, apoiada pela British Academy.
Esta reportagem faz parte da parceria entre o data_labe, a Gênero e Número, a Énois e a Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (COVID-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias