OBRAS EM FAVELAS

A ‘continuidade descontínua’ dos programas de urbanização em favelas.

reportagem
Gabriele Roza

análise de dados
Juliana Marques

arte
Giulia Santos

Crivella diz beneficiar 21 favelas com obras até 2020, todas iniciadas em governos passados. Falta de transparência marca a gestão atual e programas antigos de urbanização de favelas no Rio de Janeiro.

Em julho de 2017, quando o prefeito Marcelo Crivella divulgou seu Plano Estratégico, organizações da sociedade civil se reuniram para discutir o que faltava no documento. A principal crítica era a falta de transparência e de detalhamento das metas, previstas para serem finalizadas entre 2017 e 2020. A única meta que se refere às favelas se resumiu em uma frase: ‘‘Beneficiar 21 favelas em Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), realizando obras de urbanização até 2020’’. Pela falta de especificação da meta, como quais obras seriam realizadas, locais beneficiados e o recurso investido, não estava muito claro até então que, na verdade, a gestão de Crivella estava se referindo a finalização de obras passadas.

Em outubro, a Secretaria Municipal de Infraestrutura Habitação e Conservação (SMIH) respondeu a solicitação do data_labe com a lista das 21 favelas beneficiadas no atual governo (ver mapa abaixo ou aqui) e uma foto em baixíssima resolução (ver foto abaixo) com o número do processo instrutivo, o valor investido de cada obra e a porcentagem do valor investido até o momento. Segundo a prefeitura, as obras foram finalizadas em 13 favelas (Vila Arará, Parque Herédia de Sá, Parque Horácio Cardoso Franco, Morro da Baiana, Morro do Adeus, Morro do Piancó, Favela Vila Rica de Irajá, Complexo de Acari, Complexo do Parque Unidos, Complexo da Vila Joaniza, Loteamento Sociólogo Betinho, Loteamento Caminho do Partido, Loteamento Paciência 600) e outras seis estão com obras em fase de finalização (Parque Furquim Mendes, Proletário do Dique, Favela Vila Cruzeiro, Complexo da Penha, Parque Oswaldo Cruz e Vila São Jorge). A Secretaria não enviou informações sobre obras na Barreira do Vasco e Vila do Mexicano.

A assessoria da SMIH informou que são obras do programa Favela Bairro concluídas ou em fase de conclusão e que ‘‘nos últimos três anos, o Favela Bairro implantou 154.476,41 mil metros de novas redes de água, esgoto e drenagem; 225.254,16 mil metros quadrados de vias; 7.771,44 mil metros quadrados de contenções; 05 praças; 02 quadras poliesportivas; 03 campos de futebol; 120 unidades habitacionais; além de 1.465,00 mil novos pontos de luz (números em atualização)’’. Segundo a SMIH, até 2020 ‘‘serão mais R$ 150 milhões investidos em 5 comunidades’’. A prefeitura não respondeu se existem relatórios com detalhes da execução e do andamento das obras.

Legenda para navegar no mapa.
Legenda para navegar no mapa

Os processos das 21 obras foram abertos entre 2013 e 2016 e o site Portal Contas Rio mostra que as datas de início previstas para as 21 obras são entre 1/7/2014 e 1/1/2017, com com a última finalização prevista para 10/02/2020. Ou seja, o início das obras já estava previsto para antes mesmo de 2017, quando Crivella foi eleito, e o fim programado para 2020. No site do Tribunal de Contas do Rio as mesmas obras aparecem com datas um pouco mais antigas, previstas para começarem até 30/05/2016 e serem finalizadas até 2019. Os sites da prefeitura e do TCM também não trazem informações sobre os resultados das obras.

A imagem em péssimo estado de leitura enviada pela Secretaria Municipal de Infraestrutura Habitação e Conservação (SMIH)

‘‘Na verdade, o plano estratégico do governo Crivella não cria nenhum programa de urbanização de favelas, rompendo uma tendência que se mantinha desde pelo menos 1993, ou antes se considerarmos o Projeto Mutirão’’, diz o professor Adauto Cardoso, pesquisador do Observatório das Metrópoles. ‘‘Trata-se apenas da utilização de recursos que, por força do contrato com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, tinham que ser utilizados nessas obras’’, completa o professor.

O arquiteto e urbanista Nuno André Patrício, autor de tese de mestrado sobre o tema, ao ver a lista enviada pela SMIH explicou: ‘‘são restos de contratos e um sistema de complemento de obras, coisa que já estava rolando. A gente olha pra ali e vê que a maior parte daqueles contratos são antigos, ou são obras do Morar Carioca ou desenvolvimento do PROAP III’’.

OS PROGRAMAS DE URBANIZAÇÃO

Três programas de urbanização marcaram os 120 anos das favelas no Rio de Janeiro: Favela Bairro/ PROAP (Programa de Urbanização de Assentamentos Populares), PAC-Favelas e Morar Carioca. O Favela-Bairro, criado em 1993, atravessou as gestões dos prefeitos Cesar Maia e Luiz Paulo Conde. ‘‘Houve uma continuidade, durante esse período, de um trabalho de urbanização, de construção de equipamentos comunitários, de implantação de infraestrutura de saneamento, pavimentação de vias, drenagem’’, explica o diretor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) Gerônimo Leitão, que também participou dos projetos do Favela Bairro como consultor. Em 1997, o Favela-Bairro passa a ter o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por meio da linha de financiamento do Programa de Assentamentos Precários (PROAP).

Histórico de descontinuidade dos programas de urbanização de favelas do Rio de Janeiro.

Em 2007, o Governo Federal cria o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para investir em obras de urbanização das favelas do Brasil, ‘‘o PAC investiu equivalente a uma Olimpíada no Brasil inteiro, foram mais de 3 mil municípios contemplados’’, explica Nuno Patrício. De acordo com artigo do Observatório das Metrópoles, o Rio de Janeiro foi a cidade brasileira que mais recebeu investimentos do programa para a urbanização de favelas, foram quase R$3 bilhões investidos em 30 favelas ou complexos da cidade. O município concentrou 70% dos recursos destinados ao Estado do Rio de Janeiro e quase 10% de todo o recurso investido no país. Recurso que acabou sendo voltado para obras faraônicas, em detrimento de infraestrutura básica que as favelas do Rio ainda precisam. Dentre elas, construiu um teleférico para parte do conjunto de favelas do Alemão, que em outubro completou três anos sem funcionamento, a elevação da linha férrea em Manguinhos e a passarela com a assinatura do arquiteto Oscar Niemeyer na Rocinha.

‘‘Logo em 2007, se forma um cartel de empresas e o projeto é influenciado por esse tipo de arranjo em conluio com o poder público. Hoje a gente já sabe, o Cabral tá preso, todos os secretários de obras do Cabral estão presos e essas empresas, Odebrecht, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez, Carioca Engenharia etc, investigadas. E é claro que os moradores tiveram resistência e conseguiram parar pelo menos o teleférico da Rocinha que já era PAC II’’. Patrício explica que neste momento começaram também os contratos que atravessaram gestões municipais e receberam novas roupagens ao longo do tempo: ‘‘quando surge o PAC, muitas coisas que por exemplo estavam no PROAP [Favela Bairro], como Vila Rica de Irajá, passaram para o PAC’’.

Teleférico do Alemão, há três anos parado. Agência Brasil/Tomaz Silva

José Martins, 72 anos de vida e 52 de Rocinha, começou a se envolver na luta comunitária em 1972 para a implantação da rede de água potável na Baixa da Rocinha. Ele conta que o projeto, que seria executado pelo Estado, foi aprovado desde que os próprios moradores comprassem o material, “três anos de luta e nós conseguimos comprar o material. Depois disso, eu não parei mais. Fiquei sempre envolvido na luta comunitária”, diz Martins.

Segundo ele, com o PAC 1 uma série de obras se iniciaram, “creche, clínica da família, UPA, todas tiveram participação comunitária, a ideia das obras foi bastante discutida com os moradores. Mas o PAC 1 terminou e não fechou tudo que tinha prometido”. Já na segunda fase do PAC, a proposta do governo era construir o teleférico da Rocinha, mas os moradores questionaram: “vamos terminar o saneamento primeiro”, explica Martins. “Fomos pra rua, cartaz, passeata pedindo para não ser construído o teleférico, acabou que não foi construído nem o teleférico, nem o saneamento e ninguém sabe o que aconteceu com o dinheiro”.

‘‘O grande problema é que não tem uma política pra favela, tem um momento que fazem as coisas e então abandonam. Não tem conservação, manutenção, o poder público não toma conta, meio que terra de ninguém, coisas pontuais, não tem uma política de acompanhamento”, diz José Martins. “O poder público não vem acompanhando, mesmo que escutando um pouco a comunidade, depois abandonada. Teve Favela Bairro e outros programas, mas você faz e deixa pra lá”, questiona.

Praça do Conhecimento, no Alemão, construída com recursos do PAC. Reprodução/Prefeitura-Rio

Lançado em 2010 na prefeitura de Eduardo Paes, o Morar Carioca pretendia ser um dos maiores legados dos megaeventos realizados no Rio, em 2014 e 2016. Nuno Patrício explica que as obras do Morar Carioca também eram obras iniciadas no âmbito de outros projetos. ‘‘Ele apresenta o Morar Carioca fase 1 como um grande novo programa, mas Morar Carioca fase 1 foi pegar o que já estava sendo feito. Eram coisas que já estavam em andamento, que se chamou de Morar Carioca, mas na verdade também é PAC, foi recurso do PAC e que foi botado a plaquinha Morar Carioca’’. O pesquisador lembra que ‘‘o Morar Carioca foi muito papel, muita reunião, muitas oficinas, mas de obra de fato é muito pouco’’. Com a meta ousada de urbanizar todas as favelas até 2020, na segunda fase do programa ‘‘poucos contratos foram firmados e as intervenções não cumpriram o cronograma previsto pelo programa’’, explica a pesquisa do Observatório das Metrópoles.

Em 2017, a gestão Crivella optou por abandonar o nome do programa da prefeitura anterior e resgatar o nome Favela-Bairro para as obras que ainda não estavam concluídas. Algumas das licitações das 21 favelas foram lançadas em 2013, no segundo mandato de Eduardo Paes, sendo atribuídas ao Programa Morar Carioca, como mostram as matérias no site da prefeitura.

http://www.prefeitura.rio/web/guest/exibeconteudo?id=4526694

A Secretaria Municipal de Habitação lança, a partir desta sexta-feira (27/12), as licitações das obras do Programa Morar Carioca nas comunidades Barreira do Vasco e Vila do Mexicano, no bairro do Vasco da Gama, e, nos próximos dias, para os loteamentos Sociólogo Betinho, em Bangu, Caminho do Partido e Bosque dos Pássaros , em Campo Grande. As intervenções estimadas em R$ 54,5 milhões, contarão com recursos do Município e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

http://www.rio.rj.gov.br/web/smhc/exibeconteudo?id=6051565

O prefeito Eduardo Paes apresentou no domingo (03/04) as intervenções previstas do Programa Morar Carioca nas comunidades Vila Arará, em Benfica; Morros do Adeus, Piancó e da Baiana, no Complexo do Alemão, e Vilas Cruzeiro e Cascatinha, no Complexo da Penha.

‘‘Não importa qual é o nome do programa, se é Favela Bairro, Morar Carioca, o que importa é a manutenção de uma política pública de urbanização de favelas regular, uma política de estado. Independente de qual fosse o gestor, deveria haver uma continuidade dessa política, nessas situações de maior dificuldade orçamentária, se manteria o ritmo, que poderia ser ampliado ou reduzido, o que não aconteceu’’, lamenta o professor Gerônimo.

O arquiteto Nuno Patrício acredita ser necessário um programa permanente e efetivo, visando a progressiva melhoria das condições urbanísticas em favelas. ‘‘Não existe uma formulação nova, não existe uma agenda nova para urbanização de favelas, é simplesmente um resto de um navio que estava andando e que não parou. Ele largou o comando do navio e o navio continuou andando. Na urbanização de favelas é isso, o navio não para logo, mas agora se continuar não fazendo nada, ele vai parar’’, diz o arquiteto.

O futuro da urbanização nas favelas

Cerca de 22% da população da cidade do Rio de Janeiro mora nas 1.018 favelas da cidade, segundo os dados do Censo de 2010. O município com o maior número de moradores favelados do Brasil, 1,4 milhões de habitantes, ainda depende da construção e trabalho coletivo para garantir infraestrutura, habitação, saneamento básico e pavimentação para parte de seus moradores.

‘‘Como construção coletiva, qualquer tipo de melhoria urbanística feita para aquele território tem que ter em conta que o território já se urbanizou, foram aquelas pessoas que construíram daquela forma, que sabem onde estão as redes de esgoto, precariamente ou não, como foi distribuída a propriedade, com está aquela rede de iluminação, os espaços de convivência. Tem uma lógica, então o recurso dos programas tem que ser geridos por quem está ali. Isso é um paradigma que tem que mudar, os recursos não são geridos por aquela população, os recursos vêm do Governo Federal, do banco, ficam na secretaria e ficam entre os órgãos’’, argumenta Nuno.

Favela da Rocinha. Reprodução/Prefeitura do Rio

Integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU/RJ), a arquiteta Tainá de Paula explica que é importante que a população se aproxime da agenda de urbanização, ‘‘as pessoas tem muita dificuldade de se organizar para discutir pauta urbana porque houve um esvaziamento dos espaços de participação coletiva, o Conselho das Cidades, o Conselho de Habitação foram espaços intoxicados por uma lógica de esvaziamento político e institucional. As relações que nós tivemos não fortaleceram o tensionamento e o debate popular, esse esvaziamento foi intencional’’. Para ela, os conselhos não conseguiriam servir de ponte com a sociedade civil, o que fez as pessoas perderem a conexão com agentes institucionais, com o poder público e com a forma de operar e pautar o território.

Tainá de Paula, que também coordena o BR Cidades Rio de Janeiro, conta que estão criando o ‘Programa Planejadores Populares’ ‘‘ para promover o inverso: ter mais provocadores urbanos, mobilizadores urbanos e atores mais engajados. O programa é basicamente uma qualificação do debate da agenda urbana e políticas públicas para lideranças de territórios populares e favelas’’.

‘‘Eu acho que isso é fundamental, se você consegue ativar pessoas que têm essa fala e esse discurso nos territórios, fica muito fácil o Crivella bater na porta de determinada favela e falar ‘vou urbanizar isso aqui’ e ter um sujeito lá falando, ‘vem cá, e o planejamento e o plano orçamentário?’’’, brinca.

Como anda a obra na sua favela?

A dificuldade de conseguir informações sobre as obras de urbanização que ocorreram nas favelas do Rio de Janeiro nos últimos anos fez o data_labe criar um mapa colaborativo.

O mapa tem 21 pontos distribuídos em favelas que tiveram obras concluídas entre 2017 até agora ou estão em andamento até 2020, segundo a gestão do prefeito Marcelo Crivella. Começamos com informações disponibilizadas pela prefeitura e no site Portal Contas Rio. Agora precisamos da sua ajuda para saber o andamento e efetividade das obras. Tem alguma obra de urbanização ocorrendo na favela onde você mora? Colabore com o mapa!

FORMULÁRIO // Como anda a obra na sua favela?

 

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