AÇÃO NA JUSTIÇA DEFENDE ÁGUA GRATUITA PARA MORADORES DE BAIXA RENDA

Famílias inseridas no Cadastro Único teriam direito a 25 mil litros de água todo mês.

Reportagem: Edilana Damasceno
Edição: Elena Wesley
Arte: Nícolas Noel

Uma ação protocolada pela Defensoria Pública em março pode garantir abastecimento de água gratuito a moradores de favelas e bairros do subúrbio do município do Rio de Janeiro. A Ação Civil Pública (ACP) nº 0833043-81.2023.8.19.000 defende que o acesso à água não pode ficar condicionado apenas aos consumidores que conseguem pagar pelo serviço e, por isso, sugere que as famílias cadastradas no Cadastro Único (CadÚnico) tenham direito ao benefício.

Como funciona hoje

O Decreto nº 25.438/1999 regulamenta a tarifa social aos consumidores que residem em áreas de interesse social, que são localidades onde vivem famílias de baixa renda. Com a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), as empresas Águas do Rio, Iguá e Rio Saneamento (Águas do Brasil) assumiram o fornecimento de água e esgotamento sanitário e estabeleceram novos critérios para conceder a tarifa social. 

O contrato de concessão à Iguá, que atende parte da zona Oeste, concede o benefício a apenas 5% dos consumidores da região. A Maré é atendida pela Águas do Rio, concessionária responsável pelo Centro e pelas zonas Norte e Sul da capital. Nessas localidades, a tarifa social custa R$45,30 e prevê coleta e tratamento de esgoto e o fornecimento de 15 mil litros mensais de água, mediante a instalação de hidrômetro na residência. Caso este volume seja ultrapassado, o cliente precisa pagar a diferença.

O que a ação civil pública propõe

O defensor público Eduardo Chow, que coordena o Núcleo de Defesa do Consumidor do órgão, explica que a ação civil pública se dedica à garantia de acesso à água, seja por quem tem direito à tarifa social ou pelas pessoas que não têm como pagar por ela, no que os especialistas chamam de “mínimo vital de água”.

“A água é um direito humano fundamental! Não pode ser tratada como mercadoria e ficar condicionada ao pagamento por pessoas que não podem arcar com o custo”, defende. 

Para o cálculo de possíveis beneficiados, a ACP considera os dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome referentes ao Cadastro Único. Em março de 2023, quase 3,4 milhões de famílias estavam inseridas no CadÚnico no estado do Rio de Janeiro, mais de 70% em situação de extrema pobreza. Um dos motivos para usar o sistema como critério é a impossibilidade de considerar os dados da Cedae, visto que muitas residências não estão regularizadas como clientes. Dos mais de 2,3 milhões de clientes registrados pela estatal em abril de 2020, cerca de 200 mil pagavam tarifa social, sendo que somente 40 mil estavam cadastrados como moradores de áreas de interesse social. O número é muito aquém do levantado pelo IBGE no Censo de 2010, que aponta que 22% da população da cidade do Rio de Janeiro está nas favelas, o que equivale a quase 1,4 milhão de pessoas. 

A proposta ainda solicita a ampliação da quantidade de água a ser ofertada: de 15 mil litros de água – limite estabelecido para a tarifa social – para 25 mil litros de água. Isso porque uma família com mais de três pessoas já ultrapassa os 15 mil litros. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2020, cada morador do município do Rio gasta em média 166 litros de água por dia, o que equivale a cerca de cinco mil litros por mês.

Água acessível e de qualidade

A geógrafa e pesquisadora de justiça ambiental pela Fiocruz, Rejany Ferreira, faz parte da Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde, uma articulação de várias organizações em defesa da água como direito, e não como mercadoria. A especialista ressalta que o mínimo vital de água pode reduzir a exposição da população de favelas e periferia a problemas de saúde.

Doenças diarréicas como cólera, febre tifóide e amebíase, além das febres entéricas e a hepatite A, representam 87% das internações por falta de saneamento no Brasil, segundo o TABNET do DATASUS (2007-2015).

O Censo Maré, publicado pela Redes da Maré em parceria com o Observatório de favelas em 2019, aponta que 98% das residências possuem água encanada, mas nem sempre a água chega própria para o consumo. Elisangela Bernado, moradora da favela da Nova Holanda, chegou a passar os meses de fevereiro e março de 2023 sem água de forma regular.

“Na vizinhança algumas casas tinham [água] e outras não. Quando vinha, parecia que estávamos tomando banho em uma fossa”, conta a diarista.

Empresas ainda não têm plano de ação para atender as favelas

Embora episódios como o citado por Elisangela sejam frequentes, as empresas ainda não apresentaram o plano de ação para expansão da rede de abastecimento de água nas favelas, previsto no contrato. A ACP ainda questiona por que os valores de investimento para as favelas são inferiores às áreas mais urbanizadas e denuncia a permissão para renovação do contrato até 2040, caso os investimentos não sejam aplicados no prazo de 12 anos. 

Em resposta a esta reportagem, a Águas do Rio informou que “segue as regras previstas no Contrato de Concessão e na legislação em vigor, por meio da aplicação do benefício da tarifa social aos clientes vulneráveis” e que “os usuários podem solicitar o enquadramento na tarifa social através dos canais de atendimento”. 

A Agenersa, órgão mencionado na ação civil pública, afirma que “cabe à agência a fiscalização dos contratos de concessão, que não prevêem a hipótese de gratuidade no objeto da ação”. 

Já a Cedae, que, após a privatização, ficou responsável por captar e tratar a água para as concessionárias a distribuírem, informou que “vai apresentar sua resposta oportunamente, no prazo previsto em lei” e acrescentou que “nos 16 municípios onde ainda é responsável pelo ciclo completo do abastecimento – produção de água, distribuição e faturamento -, a Companhia segue as normas em vigor com relação a tarifas para unidades domiciliares de baixa renda”. Iguá e Águas do Brasil não responderam.

98% das residências da Maré têm água encanada, mas nem sempre ela chega própria para o consumo (Foto: Gabi Lino)

O que podemos esperar

Na Justiça, as rés estão no prazo para apresentar suas respostas aos questionamentos feitos pelo juiz, segundo Eduardo Chow. “Provavelmente vão acabar contestando”, avalia o defensor público. 

Apesar dos obstáculos impostos pelo interesse econômico, a ACP não é utópica. Isso porque Maranhão e Pará já possuem políticas semelhantes em funcionamento. A Lei 9317/21 instituiu o programa estadual “Água Pará”, que autoriza ao governo o pagamento dos custos de obtenção de água potável para famílias de baixa renda e indica a base de dados do CadÚnico como um dos meios de comprovação da situação. Já o programa “Viva Água”, instaurado pela Lei Estadual 9.085/09 autoriza que a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social isente famílias de baixa renda que apresentem consumo mental de água de até 25 mil litros.

Enquanto aguarda os desdobramentos, Elisangela torce para que o orçamento dê conta dos gastos básicos e que, de preferência, não precise pagar por um serviço ruim.

Precisei comprar água para beber, mas imagine se eu não tivesse conseguido arrumar um trabalho provisório, eu teria condições? A realidade do asfalto é diferente da realidade da favela.”

Essa reportagem é resultado de parceria entre o Maré de Notícias e o data_labe.

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