ÁGUA QUE POBRE NÃO BEBE

Como ficam o esgoto e a água nas favelas com a onda de privatizações dos serviços de saneamento no Brasil.

arte
Giulia Santos
@giius

reportagem
Adriano Mendes
@adrianumendes
Breno Henrique
@bh_soumare

edição
Fred Di Giacomo
@freddigiacomo

Enquanto Berlim e Paris reestatizam serviços de saneamento básico, o Brasil privatiza empresas públicas e flexibiliza a entrada de empresas privadas com pouco interesse em áreas periféricas.

Ter água limpa para beber, saindo da sua torneira, é um direito ou um produto pelo qual paga quem pode? Decisões importantes em relação à privatização de empresas públicas prestadoras de serviços essenciais, como os de tratamento de esgoto e distribuição de água, estão sendo tomadas, em meio a uma da maiores crises sanitárias que o Brasil já enfrentou. Territórios marginais e favelados, que sofrem com a falta de saneamento básico,  vêem seus direitos vendidos, enquanto as vidas de seus moradores estão em risco.  Por aqui os números da tragédia não param de crescer, ultrapassando 106 mil mortes em decorrência do avanço do coronavírus. Na cidade do Rio de Janeiro, segundo o painel Voz das Comunidades, que utiliza dados da prefeitura, no início de agosto haviam 4.344 caso de Covid-19 e 637 óbitos confirmados nas favelas. Líderes nesse triste ranking de casos estão os bairros do Complexo do Alemão (395), Penha (429) e Complexo da Maré (452 casos, com 88 mortos). No entanto, segundo dados da Redes da Maré, através da edição 13 do boletim “De Olho no Corona!”, a situação na Maré é ainda pior do que apontam os dados oficiais: até o fim de julho eram 1.435 casos de pessoas suspeitas ou confirmadas e 118 óbitos suspeitos ou confirmados. Sim, é neste contexto de calamidade que o processo de privatização da Companhia de Abastecimento de Água e Esgoto do Estado (Cedae) tem avançado no Rio de Janeiro. 

O principal apontamento dos que são a favor da privatização é que através dela poderíamos garantir finalmente a universalização dos serviços mesmo nas regiões mais pobres da cidade. Os que são contra, argumentam que empresas privadas visam lucro – e saneamento básico em territórios  empobrecidos não costuma ser muito rentável. Um fator importante (e que foi levantado na audiência pública conjunta, reunindo as comissões de saneamento ambiental, da região metropolitana, dos direitos humanos e cidadania e a frente parlamentar contra privatizações) é que a Cedae não dá prejuízos aos cofres do governo, ao contrário, tem apresentado lucro líquido, com aumento significativo de repasses ao governo do estado. 

A Cedae está morrendo, viva a Cedae!

A justificativa para a venda da Cedae é o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), acordado em 2017, período em que o estado do Rio de Janeiro atravessava profunda crise e precisou de apoio financeiro do governo federal. O modelo de concessão está sendo estabelecido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e prevê que a Cedae se mantenha captando e tratando água, mas que os serviços de distribuição de água e de coleta e tratamento de esgoto sejam realizados por empresas privadas, o que fará a estatal reduzir 80% do seu corpo de funcionários, demitindo aproximadamente quatro mil pessoas. A venda da Cedae, no Rio, avança no mesmo momento em que foi aprovado, em Brasília, o Novo Marco do Saneamento Básico. 

Renata Souza, deputada estadual pelo PSOL e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ, é contrária à privatização da Cedae e aponta de que forma o processo pode impactar na vida da população mais pobre: “pouca gente sabe, mas o Brasil é vice-líder em reestatização de água e saneamento no mundo, com 78 casos, atrás apenas da França. O motivo é sempre o mesmo: baixos investimentos e insatisfação com a prestação dos serviços oferecidos pela iniciativa privada. Os fundos de investimento, basicamente cinco conglomerados empresariais que têm investido na privatização da água, não possuem interesse em fornecer um serviço de qualidade, o que eles buscam é apenas o lucro, através da redução da qualidade do serviço e do aumento de tarifas. No caso da privatização da água e do saneamento, esse argumento é um absurdo e explico o porquê: há regiões em que não seria lucrativo à iniciativa privada operar a distribuição de água e o saneamento básico, pois a operação do sistema não cobre os custos operacionais. Somente uma empresa pública é capaz de operar esses sistemas de forma a garantir o direito à água e ao saneamento a toda população.”

O descontentamento da população com o serviços prestados pela Cedae nos últimos anos é parte de um projeto de desmonte, que justificaria a privatização da instituição por parte da administração do governo. É o que retrata a reportagem do site Brasil de Fato, que traz o relato de Ary Girota, ex-funcionário da empresa e presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Saneamento de Niterói. Um exemplo da consequência desse processo de desmonte é o que ocorreu nos primeiros meses de 2020: a água captada na estação Guandu estava sendo distribuída à população com coloração escura, e com cheiro e gosto ruins. Inicialmente, acreditava-se que era geosmina, entretanto, estudos posteriores revelaram forte presença de esgoto doméstico e poluição industrial.

Na casa de Andreza (32), moradora da Vila do Pinheiro, no Complexo da Maré, esse desmonte fica claro: “o problema é a falta de água. Porque [a partir de ] um certo horário não sobe água para caixa a gente só fica a critério de uma biquinha que tem na varanda e é com ela que a gente tem que se virar pra cozinhar, pra tomar banho, aí lavar roupa esquece, né? Pra lavar uma louça a gente depende só dessa torneira que tem lá, porque ela não sobe para a caixa d’água. Durante a pandemia nós fizemos uma vaquinha pra comprar mais uma bomba, aí foi quando teve uma melhora no acesso a água aqui em casa”. Perguntada sobre estar vendo a Cedae atuando em seu território, Andreza respondeu que não. 

A deputada Renata Souza defende que a administração pública precisa ser eficiente na garantia de uma Cedae que consiga prestar um serviço de qualidade à população. Privatizar não é a solução: “a questão sobre a qualidade dos serviços da Cedae não é uma questão técnica, é uma questão política, Nós defendemos uma Cedae 100% pública e que os recursos superavitários da companhia [sejam utilizados] na ampliação da qualidade e do alcance. A privatização definitivamente não é uma saída para garantir um serviço de qualidade e acessível, pelo contrário!” 

De fato os desafios são imensos, o sucateamento de empresas públicas prestadoras de serviços de saneamento prejudica ainda mais todo cenário. É o que aponta o Mapa da Desigualdade 2020 recém lançado pela Casa Fluminense, com informações sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Enquanto na cidade de Niterói o abastecimento de água para a população é pleno (100%), em Seropédica é de 68,4% e no município de Maricá é de apenas 41,8%. Em relação ao tratamento de esgoto coletado por percentual de habitantes, Niterói alcança 97,7%, Rio de Janeiro 63,5%, enquanto municípios como Paracambi, Seropédica, Itaguaí, Nilópolis, São João de Meriti, Tanguá e Guapimirim tratam 0%. Isso, mesmo, zero! De acordo com o IBGE, juntos a população desses municípios sem nenhum tratamento de esgoto soma quase um milhão de habitantes. 

Irenaldo Honório da Silva (51), morador da favela do Pica Pau, no bairro de Cordovil, relata que os problemas no cheiro da água que chega em sua casa começaram muito antes da crise da Cedae:  “quando os moradores abrem a bica, a água vem com cheiro de esgoto muito antes de acontecer o problema da Cedae. A rede de esgoto é junto com a rede fluvial e quando entope e os moradores ligam a bomba, puxam o esgoto também. São muitos canos de água um por cima do outro, sem nenhuma técnica adequada de colocação destes canos. Aqui em casa eu sempre fervo a água antes de usar, pois há um tempo a água estava vindo muito suja”. 

Diferente de Andreza do Complexo da Maré, Irenaldo às vezes acompanha serviços da Cedae em seu território, mas critica obras públicas de saneamento que foram abandonadas: “algumas vezes a Cedae vem e faz o desentupimento e a separação das águas fluviais da rede de esgoto. Em 2015 o Estado construiu uma estação de tratamento em cima do Rio Irajá terminando em 2016 e até hoje não está funcionando. A estação levaria toda a rede de esgoto de Cordovil e Brás de Pina, [o esgoto] ia passar por tratamento e cairia limpo na Baía de Guanabara. Agora virou um elefante branco, gastaram muito dinheiro e nada.”

Universalização em 13 anos, a utopia do novo Marco Legal do Saneamento

Sancionado no último dia 15 de julho pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) , o Novo Marco Legal do Saneamento Básico é audacioso em relação aos prazos, isso porque prevê a universalização do acesso aos serviços de saneamento básico no território brasileiro até 31 de dezembro de 2033. Isso possibilitaria que em apenas 13 anos o país contasse com uma cobertura de 99% de água, 90% de rede de esgoto e o fim dos lixões. 

De acordo com o Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento Básico (SNIS), hoje são 100 milhões de pessoas sem acesso à rede de esgoto e 35 milhões sem acesso à água tratada. A população vivendo em favelas no Brasil é de 13,6 milhões de pessoas, população maior que a de países como Cuba e Portugal, que vivem em condições precárias de saneamento básico ainda em 2020. É possível reverter essa situação toda em 13 anos sem encarecer os serviços e acentuar ainda mais as desigualdades? 

A desigualdade entre as regiões do Brasil se torna brutalmente visível quando observamos os dados sobre as localizações dos lixões do país. Segundo informações do Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), só em 2018 foram despejadas 37.360,8 toneladas por dia de resíduos e rejeitos em lixões no Brasil. Desse total, 63% foram despejados na região nordeste e 3,8% na região sul. Naquele ano, o plano indicava a presença de 2.906 lixões no Brasil, distribuídos em 2.810 municípios. Os estados com mais lixões eram Bahia (360), Piauí (218), Minas Gerais (217) e Maranhão (207). A região nordeste conta com 89% de seus municípios tendo lixões; muito diferente da região sul, onde apenas 15,3% dos municípios têm a presença de lixões. O fim de todos eles deveria ocorrer até o fim do ano de 2014, de acordo com o artigo 54 da Lei 12.305/2010. A lei de fato não foi cumprida, e agora, mais uma vez, o fim dos lixões foi postergado pelo Novo Marco de Saneamento Básico. 

O professor Alexandre Pessoa, engenheiro civil sanitarista e pesquisador na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz, explica de que forma as desigualdades já existentes podem ser acentuadas com as políticas de privatização: “eu vejo com muita preocupação a alteração do marco regulatório do saneamento básico no Brasil, porque sem dúvida, ele avança seguindo uma onda neoliberal que fragiliza as políticas públicas. A participação do setor privado, sem dúvida, se dá por um critério de rentabilidade. [Já nós] partimos da compreensão de que saneamento é um direito humano.” Alexandre critica a falta de utilização dos critérios de saúde nos processos de decisão dos serviços de saneamento: “As favelas obedecem a um critério de atratividade do setor privado [para a implantação de lixões], mas no critério da saúde pública é exatamente o inverso.” Nascido e criado numa favela em São Paulo, um poeta famoso escreveu: “tenha fé, porque até no lixão nasce flor”. Lucro também, pelo que indicam os interesses recentes na privatização de esgoto e lixo no Brasil.

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