Reportagem: Rahzel Alec da Silva Arte: Nícolas Noel Edição: Fred DiGiacomo
As famílias estampadas nos comerciais de margarina mostram o retrato de uma parcela do Brasil: mães, pais e filhos ostentando o direito de serem acolhidos dentro de um lar. A hora do café é o pontapé inicial do dia e a mesa posta é o que mantém os sorrisos no rosto. Embora venha à sua imaginação o cheiro de pão na chapa, seguido pela sensação aquecedora do “bom dia, filho”, uma outra parcela da população sofre constantemente com o desamparo de suas famílias e a negação da sua existência.
Foi com base nos relatos que recebia em seu terreiro, no município de Nova Iguaçu (RJ) – Baixada Fluminense, que a Zeladora de Santo, Shirley Padilha, 45, resolveu abrigar pessoas em vulnerabilidade social, há 10 anos. A prática surgiu com o intuito de expressar a caridade, um dos valores principais do Candomblé, religião de matriz africana a qual pertence.
De início, a casa de Shirley foi cedida para as pessoas que a procuravam em busca de um lugar para ficar. Manter as pessoas em um local seguro, longe dos perigos das ruas e confortável era a premissa da Zeladora, que passou a acompanhar as necessidades de cada pessoa e aos poucos, a equipe passou a chamá-la de Mãe.
Um teto todo nosso
A ideia de transformar sua casa em espaço de acolhimento específico para pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade se formou há três anos, no momento em que Shirley mais precisava de forças. O espaço, que era nutrido por suas contribuições, começou a ter dificuldades para se manter financeiramente, o que fez com que ela entrasse em contato com casas de acolhimento para a comunidade LGBTQIA+, para transferir as 15 pessoas atendidas e dar a elas melhores condições de moradia. “Foi quando conheci Indianarae Siqueira [fundadore da Casa Nem] e ela me deu a ideia. Como eu tinha o espaço, ela sugeriu que eu fizesse o acolhimento, que ela iria dar assistência, ajudar a gente”, conta Shirley.
O abrigo passou a se chamar Casa Nem – Nova Iguaçu, uma extensão da Casa Nem – casa de acolhimento para pessoas LGBTQIA+ em vulnerabilidade social, que é reconhecida pelos projetos voltados para a população transvestigênere (termo criado por Indianarae, que engloba todas as pessoas trans) e pelos anos que seguiram lutando em busca de uma residência. Com o apoio de ativistas e amigos, Shirley iniciou seu projeto/parceria com a Casa Nem, se tornando coordenadora e pôde inserir novas oportunidades para seus moradores.
Durante a pandemia, a Casa formou parcerias com as instituições ao seu redor, como o Centro de Cidadania LGBT da Baixada Fluminense, o CRAS e a REBRACA (Rede Nacional de Casas de Acolhimento LGBTI+), podendo, assim, ajudar as pessoas acolhidas com atendimento psicológico gratuito, acesso à saúde básica, direcionamentos para o acompanhamento hormonal de pessoas trans e a tão sonhada retificação de nome. Todos com o auxílio de Shirley. “Eu aqui acompanho eles na saída e na volta. Em todos os lugares que tem que ir, eu vou com eles. Tudo que precisa ser feito: documento, médico… Eu tô juntinho com eles”, conta a coordenadora.
Ainda este ano, Shirley recebeu a doação de um espaço para usar como abrigo, e em março, mudou seu nome para Casa Dulce Seixas, em homenagem a uma das grandes apoiadoras, que realizou a doação antes de falecer. No decorrer do período emergencial, a instituição chegou a atender 70 pessoas, entre as que dormem no local e as que pedem algum auxílio, mas a necessidade da reforma fez com que a casa fechasse suas portas temporariamente.
Afinal,quem tem direito à moradia, segurança e outras coisas mais?
Uma pesquisa realizada no Hornet (aplicativo de relacionamento utilizado por homens gays, bissexuais, homens trans, pessoas intersexo e travestis) aponta que durante a pandemia, homens que se relacionam com homens se sentem inseguros dentro de casa. Os dados foram reportados pelo Globo.com e podem ser vistos aqui. À medida em que pessoas LGBTQIA+ não se sintam confortáveis nos lugares em que nasceram, novas narrativas irão surgindo. Casas de acolhida, ocupações e reivindicações por moradia digna, são o pão na chapa para quem teve o direito ao acolhimento familiar negado por ser quem é.
Hoje, por conta de uma infiltração no teto, a Casa Dulce Seixas atende apenas 14 pessoas. No Instagram, moradores do abrigo registram os danos que a chuva tem causado e reforçam a necessidade de reparos na casa. Durante esta entrevista para o data_labe, a coordenadora citou as ajudas necessárias: “Nós temos espaço, mas precisamos de padrinhos, de pessoas que realmente possam nos ajudar com obras, com material, com alimentação e material higiênico”
A Casa Dulce Seixas fica em Nova Iguaçu, é o primeiro centro de acolhimento e moradia para pessoas LGBTQIA+ da Baixada Fluminense e o único que não estipula um tempo máximo para a residência. A Casa tem aceitado doação de alimentos, produtos de higiene, materiais de obra (que podem ser entregues diretamente no local) e também apoio voluntário. Quem puder contribuir financeiramente deve acessar a vaquinha no site do abacashi ou enviar um pix para +55 21 99205-5064.