FAVELA PEDE ÁGUA

Como a falta de água e saneamento afetam a prevenção do coronavírus nas favelas.

reportagem
Breno Souza

arte
Giulia Santos

edição
Fred Di Giacomo

Sem água potável e com preço do botijão de gás inflado, moradores tem que ferver água na churrasqueira durante a pandemia.

“O abastecimento de água na Rocinha, em geral, não é bom. Nos momentos em que a gente mais precisa de água é que fica mais escasso”. A fala de Rose dos Santos, moradora da Rua 2, na Rocinha, comprova: com o enfrentamento cada vez mais acirrado no combate ao novo coronavírus, não ter acesso a água potável expõe populações periféricas a um vírus de rápida disseminação, que já infectou mais de 3 milhões de pessoas no mundo e vitimou mais de 11 mil só no Brasil. Na última segunda (04/05) eram contabilizadas 1019 mortes no Estado do Rio, com triste destaque para os municípios da região metropolitana em número de óbitos: Belford Roxo (15), São João de Meriti (20), São Gonçalo (24), Mesquita (15), Niterói (27), Nova Iguaçu (44), Duque de Caxias (84) e Rio de Janeiro (631). Na capital fluminense favelas como Cidade de Deus, Vidigal, Caju, Vila Kennedy, Manguinhos, Rocinha, Vigário Geral e Complexo da Maré já registram óbitos por coronavírus.

Não é só a Covid-19 que mata moradores dos subúrbios e favelas. Doenças relacionadas à precariedade do saneamento básico são realidades de muitas comunidades. É o que mostra um estudo realizado pelo Instituto Trata Brasil em conjunto com a Reinfra Consultoria. Nos 10 municípios que ocupam as piores posições do Ranking 2015 de Saneamento Básico do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (SNIS) vivem mais de 6,7 milhões de pessoas, dos quais apenas 4,9 milhões (72,64%) acessam água tratada. Duque de Caxias e Nova Iguaçu representam a região metropolitana do Rio neste ranking. 

Doenças diarréicas (como cólera, febre tifóide e amebíase) respondem por 87% das internações por falta de saneamento junto com as febres entéricas e a hepatite A no Brasil, segundo o TABNET do DATASUS, que reúne dados do período 2007-2015. Os especialistas também apontam males transmitidas pelo mosquito aedes aegypti (como dengue, zika e chikungunya) e a leptospirose como doenças de alto contágio,  relacionadas a falta de saneamento adequado. O registro de doenças diarréicas e dengue é quatro vezes maior nos dez piores municípios do ranking em comparação com os dez melhores, e 5,3 maior quando se trata de leptospirose.

“Na rocinha tinha muito poço de água e hoje em dia não existe mais, tem um até aqui próximo de casa, mas a água não é nada confiável, pois fica aberto e quando chove cai água dentro. A água tem que ser fervida e filtrada, e não fica com um gosto muito agradável”, diz Rose.

Armazenamento de água na Rocinha.. Foto: Rose dos Santos

Fervendo água na churrasqueira
Diante do aumento no número de queixas, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) criou o canal “Onde está sem água?” para receber denúncias e dados de falta d’água por parte dos moradores e encaminhar as demandas às autoridades responsáveis. A primeira parcial foi liberada pela Ouvidoria Geral da Defensoria Pública em relatório cinco dias após o início do canal (18 de março). Das 475 denúncias recebidas, 397  (83,57%) estão associadas a falta de água de forma contínua ou intermitente no âmbito familiar do próprio denunciante, problema que foi apontado em 140 locais em 14 municípios. Dessas 397 denúncias, 6,8% são da Rocinha principalmente na região de Vila Verde, Rua 1, Rua 2, Rua 3, Rua 4, Cachopa e Casa da Paz.

É justamente na Rua 2 que Rose vive com sua família: “Na minha casa a água está caindo de dois em dois dias nesse momento de pandemia, mas costuma ficar uma semana, oito dias sem cair,aí a gente compra água pra beber e às vezes tem que comprar também pra tomar banho. Na minha casa, o maior tempo que ficou foi  duas semanas e meia sem água, foi horrível, passamos muito sufoco.” 

Mesmo a estratégia de ferver a água para torná-la potável é um desafio com a inflação que fez disparar o preço do botijão de gás. “Como nosso gás, aqui na Rocinha, está muito caro,  R$ 100, passamos a ferver água na churrasqueira, comprar carvão sai mais barato que usar o gás. A gente bota um panelão de seis litros de água e um saco de carvão que dá pra usar durante quatro dias consecutivos, então a gente ferve bastante água. Depois de fria, água é filtrada e levada à geladeira para ser consumida.”

No dia 25 de março a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) foi notificada dos dados preliminares da DPRJ pelo Núcleo de Defesa do Consumidor (NUDECON). A Cedae respondeu, em ofício, que segue atendendo a todas as solicitações em 24 horas e que tem trabalhado em caráter emergencial com 40 caminhões pipa para atender melhor à região metropolitana. 

No último dia quatro, a Cedae iniciou um novo programa de abastecimento de água visando o combate à pandemia de coronavírus em áreas de ocupação irregular e sem rede distribuidora. De acordo com o programa serão instaladas caixas d’água com capacidade de até dez mil litros com redes distribuidoras ligadas a bicas, sendo as caixas d’água abastecidas diariamente por caminhões pipas. A comunidade do Brejo na Cidade de Deus já está recebendo o sistema, que vai avançar para as comunidades Camarista no Méier,  Engenho de Dentro e Fim do mundo no Complexo da Maré. 

Daniele Vicino, de 22 anos, é moradora da região conhecida como Fim do Mundo, situada às margens da linha vermelha, se estendendo pelas comunidades da Vila do Pinheiro e Salsa e Merengue, no Complexo da Maré. A região é conhecida pela precariedade no saneamento básico, principalmente pela presença de valões e deposição de lixo. Sobre a situação na pandemia, Daniele relata: 

“Durante a crise da Cedae, estávamos comprando água mineral, mas agora que deu uma melhorada a gente já está conseguindo tomar água filtrada da torneira e está tendo água para lavar a mão e pra fazer a higiene durante a pandemia. Quando não tem água aqui a minha mãe sempre mantém um tonel de água, acho que tem 20 litros, pra caso falte.”

Se a Maré secar, o coronavírus avança
De acordo com o último Censo Populacional da Maré, cujo os dados foram coletados em 2012, dos 47.758 domicílios presentes na Maré, cerca de 98,3% possui água canalizada dentro do próprio domicílio. Entretanto, é preciso considerar que 151 (0,3% do total de domicílios) relataram a total inexistência de água encanada, e considerando também a média de 3 habitantes por domicílio, teremos 453 pessoas sem esse acesso. O Censo Maré aponta que é nas comunidades do Parque União e Nova Holanda que essa realidade é mais presente. De acordo com dados da prefeitura, a Maré contabilizava na última quarta (22), nove casos confirmados e quatro óbitos por coronavírus, embora devido a subnotificação esses números possam ser ainda maiores.

Segundo Ana Lúcia Brito especialista em saneamento ambiental e pesquisadora da UFRJ, água é fundamental para vencer a pandemia: “A primeira coisa que se diz é pras pessoas evitarem a contaminação lavando as mãos várias vezes por dia, cuidando da higiene  das roupas e da casa. Se há lugares em que a água entra uma vez por semana ou que não tem água, isso compromete a possibilidade de atender às determinações da OMS e do Ministério da Saúde.”

Daniele, moradora do Fim do Mundo, não costuma ver a Cedae atuando: “Não, não tenho visto ninguém da Cedae por aqui não. Já falaram que viram um ou dois caras com camisa da Cedae, mas eu mesma não tenho visto ninguém da Cedae por aqui”. A realidade não muda para Rose: “Na rua a gente vê muito cano quebrado que é da Cedae, pelo Facebook mesmo eu vejo muito o povo questionando, perguntando, pedindo, então sinto muita fragilidade no trabalho da Cedae aqui dentro da Rocinha”. Tanto a Maré, quanto a Rocinha possuem unidades da Cedae em seus territórios.

A DPRJ e o Ministério Público (MPRJ) encaminharam uma liminar através de ação civil pública  pedindo a abertura de um gabinete de crise composto pela Cedae, Governo Estadual e o Instituto Metrópole. O pedido foi negado pela 9ª Vara da Fazenda Pública no mesmo dia de seu envio e está agora em segunda instância. Alguns dos principais pontos cobrados pela ação civil pública são: mapear áreas de abastecimento precário e com alto risco de transmissão de coronavírus e elucidar os procedimentos de distribuição de água por meio de caminhão-pipa. 

O Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), no dia 27 de março, divulgou em carta aberta demandas ao poder público, através de dez medidas emergenciais e estratégicas para reduzir os impacto da falta água entre as pessoas mais pobres durante a pandemia de coronavírus. Entre as principais medidas sugeridas estão suspender a cobrança e o corte de água dos mais pobres por quatro meses; interromper a redução da pressão da água que abastece comunidades; garantir o abastecimento de água nas unidades hospitalares e emergências; garantir abastecimento em asilos, residências comunitárias e presídios; e estratégias para saúde de população de rua, como por exemplo instalação de bebedouros, torneiras e banheiros comunitários.

Para Ana Lucia Brito, que também é coordenadora do Ondas, a criação de um gabinete de crise só seria efetiva com participação dos moradores: “O gabinete de crise pode ser uma alternativa desde que traga atores da sociedade civil organizada pra participar. Quem sabe onde tem ou onde não tem água é quem está sofrendo com a falta de água. Eu falo, por exemplo, das entidades que representam os moradores de favela né? Eles podem fazer a ponte com os moradores e identificar onde os problemas estão acontecendo”.

*Breno é colaborador do data_labe no âmbito da parceria com o PPGTU/PUCPR e Durham University em pesquisa sobre ativismo digital e territórios urbanos da margem, apoiada pela British Academy.

Esta reportagem faz parte da parceria entre o data_labe, a Gênero e Número, a Énois e a Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (COVID-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias

Com um PIX você apoia o data_labe a seguir produzindo conteúdos como este!

Use o QR code no app do seu banco ou copie a chave aleatória.
Você pode doar a quantia que quiser.

00020126360014BR.GOV.BCB.PIX0114313705010001935204000053039865802BR5909Data Labe6014Rio de Janeiro62190515DOACAOSITELIVRE63048F94

Todo mês uma seleção braba de conteúdos sobre dados, tecnologias, favelas e direitos humanos.

Pular para o conteúdo