MARÉ ROSA

Na Maré seca dos anos 80, mulheres da Nova Holanda se organizaram na luta pela água.

arte
Nícola Noel

reportagem
Breno Henrique
Ruth Osório

edição
Fred Di Giacomo

Em tempos de precarização do saneamento e de avanço da covid19, muito se fala sobre a ausência do poder público nas favelas garantindo serviços e saúde. Mas e sobre as estruturas de saneamento que já temos? Na busca por entender o processo de chegada da água no Complexo da Maré, nos deparamos com a história de mulheres fortes e organizadas, que 40 anos depois ainda são reconhecidas pelas conquistas da Chapa Rosa.

“Quando cheguei aqui na Maré, por volta dos anos de 1980, tudo era muito precário e saneamento básico não tinha nenhum. Não tinha calçamento. Quando chovia nós tínhamos que ir daqui até na Avenida Brasil com um sapato pra chegar lá e calçar outro sapato de tanta lama que tinha aqui nesse local. Era tudo muito difícil e muito precário. Logo assim que tava no início da Chapa Rosa nós começamos a fazer movimentos na luta para conseguir água, esgoto, luz e tudo mais que nao tinha aqui”. 

Este relato é da Dona Helena Dias Vicente, de 70 anos, hoje aposentada e também uma das diretoras da Redes de Desenvolvimento Maré. Figura ilustre na luta pelo acesso à água potável na Comunidade de Nova Holanda, Helena foi integrante da Chapa Rosa, um coletivo só de mulheres da Maré engajadas na luta por uma vida mais digna para os moradores. A Chapa Rosa foi a primeira chapa eleita, por eleições diretas, para a Associações de Moradores da Nova Holanda, em 1984, num momento marcado pela participação de todos e que mudou completamente os rumos da favela.

Nessa época, Nova Holanda ainda era favela de barracos, construída pela prefeitura para ser um centro de habitação provisório, reunindo moradores removidos das favelas do Pinto e do Esqueleto. Esses moradores eram enviados para Nova Holanda até adquirirem os “hábitos necessários para sair da favela”. “Era um espécie de Minha casa, Minha vida mas com um processo pedagógico forte para incutir valores. Esse processo de reeducação de favelas que é sempre uma prática do governo: achar que pobres precisam ser reeducados dentro de um modelo burguês de práticas sociais”, conta Monique Carvalho, que escreveu uma dissertação sobre as memória e mobilizações da Nova Holanda, em 2006. 

Atuação da Chapa Rosa: é possível ver ao centro Eliana Silva, liderança local.
Crédito: Redes de Desenvolvimento da Maré.
Contribuições de pesquisa de imagem: Francisco Valdean (Museu MIIM).

Mulheres na linha de frente 

“Na época, a Eliana [que hoje é uma das diretoras da Redes da Maré] estava no primeiro mandato da Chapa Rosa e nós começamos a fazer os mutirões para conseguir água, para conseguir saneamento básico e fazíamos as reuniões na Escola Nova Holanda, onde a gente conseguia colocar numa noite mais de 200 pessoas e dali saiam representantes de cada rua, já com a ideia de ir lá na Cedae, de ir na prefeitura, de ir aonde pudéssemos para poder conseguir que eles viessem colocar água. Mas tudo era muito difícil. Quando começou o saneamento nos dias de mutirões, dias de domingo, os homens ficavam cavando as ruas e nós íamos levar lanche, levar água pro pessoal que estava cavando a rua pra poder trazer água. Porque a água só tinha lá perto da Avenida Brasil, onde tinha encanamento, nas ruas daqui não tinha nenhuma gota de água. A chapa sempre teve uma atuação muito forte, com a Eliana na Frente, ela tinha muito acesso às autoridades, sempre buscando, sempre na frente e nós as outras mulheres sempre apoiando e ajudando.

Chapa Rosa em campanha para a Associação de Moradores da Nova Holanda em 1984.
Crédito: Redes da Maré

Eu, Penha, Roseli, Dona Dalva, todas nós sempre apoiando ela nessa luta.”, conta Dona Helena e acrescenta:

“A Eliana foi a primeira presidente mulher de uma associação de moradores aqui no Rio de Janeiro, então até por esse fato [de ser mulher], muita coisa ela conseguia falando com as autoridades, muitas coisas a gente conseguiu pelo simples fato de ser uma mulher na linha de frente. Eu não posso esquecer de falar da Maria Amélia Belfort, que também foi uma grande guerreira nos ajudando. Ela foi uma das iniciadoras da creche, ficava com as crianças para as mães irem trabalhar, o que deu origem a creche comunitária. São muitas coisas que vamos nos lembrando, onde podemos  ver um pouco da história vindo à tona”. 

Eliana Silva, presidindo a Associação composta, majoritariamente por homens.
Crédito: Redes da Maré

Apesar do acesso à água afetar toda população da Maré naquela época, é muito simbólico que tenham sido mulheres as protagonistas dessa luta. A gente sabe que o acesso aos serviços de saneamento está longe de ser igual para todos, mas com mostra a reportagem da Agência Brasil, as mulheres são historicamente responsáveis por buscar água e manter a higiene do lar. Quanto pior o saneamento, mais sobrecarregadas e vulneráveis elas estão. Isso sem contar o risco de sofrerem violência sexual (durante o trajeto na busca por água), e das doenças.

Como apontado no trabalho Mulheres & Saneamento, os impactos da falta de saneamento vão para além das doenças, diminuindo também o potencial das mulheres para estudar e trabalhar.  Só em 2016, 12 milhões de brasileiras não tinham sequer o acesso a rede de distribuição de água. Ou seja, 11% da mulheres brasileiras estavam sujeitas a violência, doenças e tendo que que se mobilizar para conseguir acessar um dos seus direitos mais básicos: água. Se olharmos para os dados de acesso à coleta de esgoto, a situação é ainda mais preocupante: 26,9 de mulheres residem em moradias sem acesso, o que representa 25% das mulheres brasileiras.

São ainda mais preocupantes os dados do SUS 2013 que apontam o registro de 353,5 mil internação e quase 5 mil óbitos de mulheres por infecções gastrointestinais ligadas ao saneamento básico.

Das lutas por direito ao cenário atual

“Os moradores viam a atuação da Chapa Rosa com bons olhos, porque todos precisavam de tudo. Hoje as coisas são mais difíceis porque a maioria dos moradores antigos [que estavam na luta por água] morreram. E os outros foram chegando e já encontrando tudo pronto.”, diz Helena.

Puxadinhos de água são marcas registradas nas favelas do Rio de Janeiro. Isso porque os moradores vão erguendo suas casas e vão utilizando de técnicas cada vez mais criativas para levar água aos cômodos, o que é uma necessidade básica para qualquer ser humano. Em dias de muito calor todo mundo quer se refrescar, os moradores instalam e ligam os chuveirões e montam piscinas nas ruas para terem acesso ao lazer que lhes é negado. O não desperdício é um dever principalmente das companhias de abastecimento,  isso porque é comum observar em favelas o desperdício de água limpa em tubulações principais rompidas ou em péssimo estado de conservação. De acordo com o Sistema Nacional de Informação Sobre Saneamento (SNIS) de 2018, a Cedae apresentou mais de 30% de perdas na distribuição de água, só na cidade do Rio a perda atinge 29,5%.

Enquanto desperdícios ocorrem, à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) divulgou em abril deste ano relatório com 550 denúncias de falta de água em favelas e bairros da Cidade do Rio e Região Metropolitana. Das 434 denúncias diretas, 11 denúncias são de comunidades do Complexo da Maré como Vila do Pinheiro, Vila do João, Parque Rubens Vaz e Nova Holanda. De acordo com o Censo Populacional da Maré lançado em 2019, 99,2% dos 47.758 domicílios do território são abastecidos com água canalizada dentro ou fora de casa. Dos 453 domicílios (0,3%) que não possuem canalização à maior parte estão no Parque Rubens Vaz, Baixa do Sapateiro, Parque Maré, Nova Holanda, Vila dos Pinheiros e Parque União. 

Na favela a luta nunca termina

A precarização do saneamento está matando e isso não é novidade, principalmente para as mulheres. Olhar para a nossa história é entender que, na favela, a concepção do direito não perpassa somente um caminho legal. O morador sabe que, se ele não lutar, ele não vai ter acesso. Monique traz esse discurso ao longo da vida:  “ainda que as pessoas não acordem e falem “hoje eu vou fazer um mutirão, eu vou lutar contra o capitalismo”, o morador tá precisando de uma coisa urgente. Ele não conta com o Estado, ele sabe que o Estado está muito longe. As formas como eles reagem à exploração do Estado é a organização, coletiva ou individual. Isso é desde da construção do estado brasileiro. Se a gente pensar na formação do Estado Nacional, para olhar para história do país, a gente vê que é isso: as pessoas se unindo para conquistar alguma coisa, para lutar por alguma coisa, só que isso é sempre muito apagado né. Essa história nunca é contada”.

E essas são histórias de lutas que atravessam gerações: “eu acho que a Maré ela tem a mobilização comunitária como marca. A coletividade, a ideia de você trabalhar junto. Eu acho que isso é uma característica das favelas, dessa união. E aí eu arrisco a dizer, como hipótese, que isso é fruto da história, da memória, porque os avós lutaram, os pais lutaram. Ainda que a história não seja contada recorrentemente, mas tem uma memória que ela é ativada ali”, conclui Monique.

A reflexão é muito importante para todos nós. Ainda que estejamos o tempo todo gritando e lutando por melhores condições de vida e saneamento, é importante que façamos o exercício de pensar nas duras conquistas de grandes tubulações para o território, permitindo aos moradores acessar água potável sem precisar ir de barco até a Ilha do Fundão ou a pé até a Avenida Brasil. As lutas da Chapa Rosa são motivo de orgulho para Helena: “olhando assim para trás hoje eu me sinto orgulhosa de ver o que a gente tem hoje e saber que tudo isso começou com a Chapa Rosa, a própria Redes da Maré é a origem da Chapa Rosa. É um orgulho ver, agora, nessa pandemia, tantas buscas e tantas ajudas, então, sinto muito orgulho de ver que a Chapa Rosa não morreu.”

Foto © Douglas Lopes

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