NA QUARENTENA NÃO TEM BACANAL

Baco Exu do Blues fala sobre novo EP, a hegemonia branca na imprensa, isolamento social, sua torcida por Babu no BBB e porque ama Cardi B e odeia Bolsonaro.

entrevista
Elena Wesley

foto da capa
Wilmore Oliveira

edição
Fred Di Giacomo

“Se Deus fosse mãe de todos, ele teria amor por todos, porque mães costumam amar seus filhos. Já pais abandonam.”

“Longe de você, preta, eu sofro / Que a quarentena acabe antes de agosto”. O desabafo de Baco Exu do Blues nos versos de “Preso em Casa Cheio de Tesão” traduz parte da angústia provocada pelo isolamento social em tempos de Covid-19 experimentado por um terço do globo terrestre. 

Mais do que saudade do convívio, a pandemia desencadeou no rapper baiano, de 24 anos, a frustração de adiar o lançamento de seu terceiro álbum – “Bacanal”, previsto para o início de 2020 e que conta com participações pesadas de BK, Duda Beat, Hamilton de Holanda, Ney Matogrosso, Kiko Dinucci e Urias. Restou, então, aliviar na arte os conflitos internos que sinalizavam um adoecimento iminente para um rapper que lida com a depressão há anos e se define como viciado em ‘trampar. Surgia, assim,  o EP de nove faixas “Não tem bacanal na quarentena”. 

Produzido em apenas três dias – com composição e gravação caseira, beats de Nansy Silvvy e edição online – o EP não economiza nos flows envolventes, traps românticos e críticas certeiras. Já na primeira, “Jovem Preto Rico”, Diogo “Baco” Moncorvo questiona os papéis sociais delegados aos negros e a não aceitação daqueles que, como ele, ousam pensar fora da caixa. Em “Humanos  não matam deuses” o rapper, que estourou no cenário nacional com “Esù” (2017), é direto: “Cê ter dinheiro não te torna branco”. Na entrevista abaixo, o artista aprofunda a reflexão sobre a dificuldade de entender o negro como indivíduo plural, frequentemente reforçada por uma imprensa majoritariamente branca (“O problema é que a pessoa branca sempre tem que ser a pessoa mais inteligente na pauta.”).

Em meio às love songs que contam com participações das cantoras Maya, Aisha e Lellê, Exu do Blues apresenta, em “Dedo no Cu e Gritaria”, o trio de mcs Celo Dut, Vírus e Young Piva, artistas baianos que integram seu selo 999 e participaram da produção do vindouro “Bacanal”. 

Sem meias palavras nas críticas ao  presidente, Baco também explica o antagonismo da última faixa “Amo Cardi B e Odeio Bozo”, ao comparar a forma como a rapper norte-americana e o presidente brasileiro se posicionaram a respeito do novo coronavírus (“Cardi B fez mais que nosso presidente. Não é uma frase bonita e poética, é uma análise concreta.”). 

A faixa final conclui a linha narrativa do disco com relatos de moradores de favelas e bairros marginalizados (como a Cracolândia paulista) sobre a repercussão das medidas de isolamento nesses territórios, ressaltando que as desigualdades privam muitos não apenas do acesso ao bacanal. 

Foto: Filé com Fritas

Baco, você já declarou diversas vezes que é viciado em trabalho. Como a necessidade de parar, refazer o planejamento do ano e adiar o lançamento do “Bacanal  repercutiu em você?

Eu fiquei com muita raiva de primeira, porque eu tinha muitos planos para tocar esse ano. Fora o “Bacanal”(terceiro disco de Baco, gravado em 2019 e que deveria sair este ano, mas foi adiado devido ao Covid-19), eu tinha outros projetos, fora da música, mas acho que todo mundo está com esse sentimento de vida interrompida. 

Em algumas faixas do EP “Não tem bacanal na quarentena”, como “Jovem Preto Rico”, você fala sobre a relação com a fama. Geralmente as pessoas perguntam o que mudou na sua vida depois que você explodiu, mas eu queria te perguntar o contrário: o que não muda pra um jovem preto rico que é um dos principais nomes do rap?

O racismo não mudou, saca? Minha ansiedade se manteve, minha cobrança. Nós, jovens pretos, somos condicionados ao assoreamento. A gente sonha em conseguir a carreira de sucesso que é uma parada colocada como distante de todos nós. E a gente acaba romantizando isso, como se a maioria dos nossos problemas fosse acabar depois [da carreira de sucesso]. Óbvio que melhora pra caralho você não precisar ter essas preocupações do dia a dia, com grana  e tal, é uma parada realmente satisfatória. Mas se a gente para pra pensar assim no emocional, no sentimento, no princípio mesmo da parada, geralmente simplifica. Deixa tudo mais escancarado o quanto você não é aceito socialmente. 

Você acha que o dinheiro é a barreira e tudo mais, mas chega um momento que você vê que não é o dinheiro nem nada. É aquilo mesmo [o racismo]. E esse tombo no cavalo pra muita gente é muito forte, né?

Você declarou sua torcida pelo Babu no programa Big Brother Brasil,  nas redes sociais, e produziu a faixa “Tropa do Babu” reforçando isso. Existe um pouco de Babu em Exu do Blues?

[Existe] como pessoa, não é nem como artista, mas como pessoa. Eu vejo que várias coisas que ele passa ali dentro daquela casa eu passei também, sabe? Em várias situações da minha vida em que eu fui tratado como monstro. De você ter feito algo e te colocarem nesse papel. E homens brancos fazerem coisas bem piores do que você e as pessoas “Ah, não, ele vai mudar. Ele errou dessa vez”. E quando é o homem negro, ele não presta. Eu me identifico muito com Babu por causa disso. 

Ainda falando de BBB, a Thelma Assis (participante dessa edição do programa) também foi alvo de comentários racistas, junto com a jornalista Maju Coutinho, em uma live de um homem branco (o ex-diretor da Band Rodrigo Branco) que acusou  negros de se fazerem de coitados. A Djamila Ribeiro (escritora e ativista) até se posicionou pontuando que é desonesto os brancos dizerem que a gente consegue cargos pela cor da nossa pele, quando são eles que têm conseguido há cinco séculos. O que você diria para esses brancos que ainda atribuem as conquistas negras ao assistencialismo?

 Cara, noooossa, realmente me falta a mínima vontade de ter contato com esse tipo de pessoa. São pessoas que não têm salvação. Tem várias coisas explicando pra elas o que aconteceu com os negros, os porquês, o quanto estamos em desvantagem social em relação aos brancos. Uma pessoa que tem uma fala dessa tendo dinheiro e acesso a tanta informação é, no mínimo, retardado, tá ligado? Não acredito que essa pessoa seja digna de diálogo, não. Acho que é digna de prisão. Cometeu um crime, vai preso, não é assim? Não é assim que fazem com as pessoas negras? Cometeu um crime, vai preso! 

Há muito racismo na indústria cultural também, né? E é algo que se contrapõe a um movimento que vem da rua, como o rap. Como você enxerga uma imprensa predominantemente branca analisar teu trabalho? 

Esses dias eu li uma crítica sobre meu trampo de um homem branco. Tem uma parte que ele afirma que eu coloquei palavras por colocar e que era algo genérico e sem sentido. É muito mais fácil a prepotência do homem branco hétero, nem sei se ele é hétero, mas do homem branco no geral. O quão difícil é você assumir que você não entendeu uma coisa, ta ligado? O quão difícil é você só falar “pô, eu não entendi”. Ninguém é retardado pra colocar letra em cima de letra sem razão, ou falar um bocado de nome sem razão mesmo, é?

A questão de tudo isso é eu não estar no lugar que queriam que eu estivesse, agindo da forma que queriam que eu agisse e meu trabalho ter chegado num lugar alto. [Eles pensam:] “Ah, é massa falar sobre o negro, é massa falar sobre matriz africana, mas acho que num tinha que ser tão alto assim, não”. “Ah, por que ele tá aqui? Ah, por que ele age dessa forma? Ah por que ele fala dessa forma?” Por que eu uso as referências que eu uso, saca? Acho que tem essa parada da minimização. O problema é que a pessoa branca sempre tem que ser a pessoa mais inteligente na pauta. E quando aparece uma pessoa negra com referências ou com inteligência que pode ser comparada ou superada à dela, ficam discutindo. As pessoas gostam de falar sobre o negro da posição que elas vêem. Nos filmes, em novelas, no jornal elas falam sobre pretos a partir do que elas tão acostumadas a ouvir falar do que os pretos fazem. 

Você acha que essa influência que você tem da literatura, das artes visuais, que vem da sua mãe, que é professora da área, te trouxe obstáculos num cenário em que, como você falou, as pessoas limitam que o rap só pode falar sobre x e não sobre y?

 Eu acho que me ajudou pra caralho, porque eu exponho as coisas do jeito que eu quero expor. Mas eu acho um saco as pessoas definirem que as pessoas negras não têm personalidade. Não perceberem que nós somos diferentes e que cada um pensa diferente. Elas sofrem por serem negras, óbvio, mas tendo gostos diferentes, referências [diferentes], somos de grupos diferentes, culinárias diferentes. Gostamos de outras coisas que não é só o que o outro define. É importante as pessoas começarem a entender o negro como um indivíduo e não apenas como uma grande massa onde você gosta disso,vocês são isso e aquilo outro e é isso o que vocês têm que ser.

Foto: Filé com Fritas

Na última faixa do seu EP, “Amo Cardi B. e Odeio o Bozo”, você diz “Pensando em engravidar Deus pra ver se ele faz um mundo igualitário”. Esse mundo igualitário vai acontecer em algum momento?

Acho que essa melhora vem, eu acredito. Tem que ser positivo e acreditar nisso. Quando eu falo que quero engravidar Deus, eu falo que Deus tem amor pelas pessoas como eu, pessoas que teoricamente não estão na melhor posição social possível.  Então, se Deus é pai de todos, ele tem que ter amor a todos. Mas ele não tem. Talvez se Deus fosse mãe de todos, ele teria amor por todos, porque mães costumam amar seus filhos. Já pais abandonam. 

Nessa mesma faixa (“Amo Cardi B e odeio o Bozo”), você diz que a rapper norte-americana fez mais que o presidente na luta contra o Covid-19. Como você avalia essas ações do governo federal no combate ao coronavírus até agora?  

Acredito que a Cardi B fez mais do que o presidente porque ela publicou um vídeo falando pro pessoal tomar banho e ficar em casa e viralizou, enquanto o que viralizou do nosso presidente foi ele menosprezando um vírus, que está erradicando várias pessoas na face da terra, e chamando as pessoas para irem pra rua. Se a gente for analisar corretamente, é fato que a Cardi B fez mais que nosso presidente. Não é uma frase bonita e poética, é uma análise concreta.

Existe uma certa romantização da pandemia, afirmações de que a humanidade vai sair melhor depois desse período. Você acha que o jovem negro, o jovem pobre, sai melhor desse cenário?

Acredito que sim, em partes, só pelo fato do jovem ouvir que o Presidente da República não liga se os pais dele ou ele vão voltar vivos pra casa. Essa parada de “tô nem aí se você vai viver ou morrer com a pandemia, quero que você trabalhe”. Acho que isso deixa muito claro de vez pra periferia, não só pra periferia, mas pra todas as pessoas, o senso do governo e do empresariado com o lado humano. Ninguém está ligando pra porra nenhuma, e é importante a gente começar a se atentar sobre isso. É importante a gente parar de romantizar, como se não evitar erradicar várias pessoas pelo mundo não fosse um assassinato em massa, um genocídio.

Desde seus primeiros trabalhos você aborda seus conflitos internos, a ansiedade, a depressão.  O disco também foi uma estratégia para cuidar de si mesmo nesse período? 

 O grande motivo foi esse, ter alguma coisa pra ocupar minha cabeça. Sei lá, tava oxidado, tava ficando maluco, sabe?

E qual o impacto que você acha que o teu álbum pode ter para as pessoas que enfrentam esses mesmos desafios? 

É, eu não sei direito (risos). Não sei, espero que ajude. Porque eu fiz a arte pra me aliviar disso, saca? Não necessariamente ela fala sobre isso, mas eu fiz ela pra aliviar esse sentimento, tirar coisas que eu tava pensando do peito, jogar tudo pra fora. Eu estava precisando! Antes da quarentena, eu estava com o braço machucado, eu já não tava saindo, então, quando eu melhorei começou essa parada toda, eu fui começando a ficar maluco. Eu já tinha muito tempo sem sair de casa, sem fazer minhas coisas, sem trampar. Eu precisava só desabafar um pouco. Tudo o que eu faço eu crio expectativa sobre, já fico ansioso.

Você se cobra muito, né?
É, eu queria que eu não me cobrasse tanto. 

E essa cobrança vem de fora também, né? Tudo o que você lançou causou muito na cena. Como você lida com essa pressão de que o Baco tem que ser sempre bom, tudo o que Baco cria tem que ganhar de Beyoncé e Jay-Z? (“Bluesman” de Baco venceu o Grand Prix do festival “Cannes Lions” na categoria “Entretenimento para a Música”. O casal de músicos norte-americanos concorreu, na mesma categoria, com “Apeshit”)

Eu quis que me preparar pra isso. Entender, mas também não pensar muito. Eu tento acreditar o máximo em mim como músico e saber que eu tenho potencial para fazer algo grande. Eu acho que o julgamento das pessoas , no geral, passa por muita coisa. Não é só fazer música boa, saca? Eu acho que às vezes você faz música boa e, mesmo assim, nego tá cagando. Nego não quer saber se você fez música boa, só quer criticar mesmo. Você acaba ficando maluco e eu fiquei maluco, então eu prefiro tentar ignorar o máximo possível, pra não passar isso pras minhas músicas.

Existia uma grande expectativa pro lançamento de “Bacanal” esse ano. Tem alguma previsão?Eu queria lançar quando terminasse a quarenta, mas não sei quanto tempo ela vai durar, não sei se vou conseguir segurar. Mas no meu pensamento é soltar assim que acabar. Já está pronto desde o ano passado.

Foto: Filé com Fritas

“Na quarentena não tem bacanal” segundo a cena:

“As letras são boas, ele conta um pouco do que está acontecendo em meio a essa pandemia, em meio a essa quarentena que todos estamos vivendo. O resultado final ficou muito bonito.[Na quarentena não  tem bacanal] foi um EP pra poder entreter o público e os fãs que estavam pedindo músicas e músicas pro Baco. E, claro, quando ele soltar ‘Bacanal’ vai ser um estouro.” (Depoimento exclusivo pra reportagem) 
Nansy Silvvz, produtor e beatmaker, trabalhou com Baco em “Esù” e “Não tem bacanal na quarentena”

“Três dias pra fazer um trabalho desses? PQP! Sou fã.” (No Instagram)
Illy, cantora e compositora baiana, gravou “Devagarinho 2.0” com Baco e Arnaldo Antunes.

“Saí da quarentena de uber (tomando todos os cuidados rs). Chegando lá (casa do Baco), ele me apresentou a música e eu pirei demais. Na mesma hora coloquei o vocal. Foi bem rápido, coisa de 1h. Baco é workaholic total, capricorniano, né? Eu me inspiro demais. Profissionalmente ele é muito visionário, como pessoa é uma convivência muito leve. Ele está sempre dando risada, fazendo graça, além de ser muito atencioso com os fãs.” (Depoimento exclusivo pra reportagem) 
Aísha, cantora, acompanha Baco nas turnês e participou da faixa “O Sol Mais Quente” em “Não tem bacanal na quarentena”

“Baco viu que eu tava no estúdio pelos meus stories. Eu nem sabia que [o convite] era pro EP. Só respondi “sim, claro, óbvio”. Achei a faixa super eu. Foi muita sorte minha ter feito parte desse EP maravilhoso. Pra gente que é artista independente é mais difícil lidar com a pandemia, porque somos muito sozinhos. Tô com um clipe pro mês que vem, eu mesma fiz de casa. Mando pro editor que ta na casa dele, tiro foto pelo celular mesmo, é fazer do jeito que der.”
Maya, cantora e compositora dos EPs “Love” e “Anger”, contribuiu na faixa “Ela é Gostosa pra Caralho” em “Não tem bacanal na quarentena”

“Baco é carinhoso na forma que conduz. Ele deixa você livre pra fazer o que acha que deve fazer na música. Ele é muito jovem pra lidar com tudo isso e lida muito bem. Se deixar, ele produz uma faixa por dia, tem muito pra dizer. A faixa que participei no EP era a única que já estava mais engatilhada, de um outro projeto. Foquei bem no TUDO VAI DAR CERTO, porque é exatamente o que eu gostaria que acontecesse”.
1LUM3, cantora, faz o vocal em “Tudo Vai Dar Certo” no novo EP e esteve em “Me desculpa, Jay-Z”, do álbum “Bluesman”

As playlists do Baco

Perguntamos pro Baco quais eram os rappers da nova geração e os medalhões da MPB que ele anda mais ouvindo. Selecionamos músicas desses artistas e montamos duas playlists com os favoritos do Baco pra você:

Esta reportagem faz parte da parceria entre o data_labe, a Gênero e Número, a Énois e a Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (COVID-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias

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