CÓDIGOS ANCESTRAIS

Mulheres negras reverenciam ancestralidade a partir de suas experiências no universo dos dados.

Reportagem: Edilana Damasceno
Edição: Elena Wesley
Arte: Nícolas Noel

“Eu sou porque nós somos”. É o conceito de “Ubuntu”, originário da língua Zulu, que tem conduzido a trajetória de Bianca Caetano na programação desde 2019. A jovem de 21 anos trabalhava como artesã e nem sabia bem do que se tratava este campo, até ingressar num curso de tecnologia no Alemão, favela onde mora. A conexão entre as tecnologias da arte e as dos dados se deu num processo natural: “tecnologia é o estudo da técnica, da arte, do ofício, tem tudo a ver”. O estranhamento veio na percepção de que foi preciso uma iniciativa social com foco em gênero e renda para que ela pudesse acessar  um saber ainda excludente para jovens como ela. 

A pesquisa “Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM)”, publicada em 2018 pela Unesco, aponta que mulheres compõem aproximadamente 3% das pessoas matriculadas em cursos de Tecnologia da Informação e Comunicação. Se os números evidenciam o tamanho do obstáculo, Bianca se agarra no tamanho de seu sonho: se tornar uma desenvolvedora back-end, programador que lida com o armazenamento e uso de bancos de dados dos aplicativos e softwares. Recorrendo a um computador emprestado, ela segue nas aulas do curso da plataforma Vai na Web – uma escola de tecnologia digital para pessoas de baixa renda – e se prepara para ingressar na graduação em Ciência da Computação.

Embora a definição de “tecnologia” no dicionário seja “teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana”, o senso comum tende a associar o termo a avanços digitais. É o que explica a pesquisadora independente Morena Mariah. Desde 2018, a assessora parlamentar faz o contrapõe tal percepção a partir do conceito de tecnologia ancestral.

Tecnologia ancestral é uma forma ampliada de enxergar os modos de produzir a vida e de rever a ciência antiga com as lentes do futuro. É buscar no passado as ferramentas para construir utopias que nos permitam ‘superviver’ ao invés de sobreviver. 

Morena acrescenta que as mulheres negras são protagonistas na aplicação desse conceito no dia a dia, na liderança de terreiros, igrejas e comunidades nas periferias urbanas. 

É uma forma de organização social, mas também um mecanismo de sobrevivência. As Yalorixás (termo usado para denominar as mães de santo no candomblé) sempre organizaram e sustentaram a estrutura dos terreiros. Nas favelas, temos as mulheres nas lideranças comunitárias, na organização coletiva para cuidado dos filhos. Até mesmo nas igrejas da periferia, vemos o protagonismo dessas mulheres nas estruturas de cuidado”, exemplifica Mariah, que atualmente trabalha na publicação de um livro sobre o tema.

Os saberes que atravessam gerações dão força para que Nicole Pessoa, 26 anos, permaneça de pé. A desenvolvedora back-end questiona como o ambiente pode ser solitário e exige cuidados com a saúde mental. “Os homens são sempre maioria, então faz diferença buscar força de fora e referências de quem conseguiu prosseguir”. Uma das maiores referências de Nicole é a cientista da computação, pesquisadora e hacker antirracista Nina da Hora. Foi por meio de uma das postagens da ativista nas redes sociais que Nicole conheceu o “Guia Mangá de Estatística”. Como uma “jovem nerd” de carteirinha, Nicole encontrou na obra uma linguagem acessível e que fazia sentido com seu repertório. “Coisas que eu não conseguia entender, pra muitos pode ser algo simples, mas pra uma pessoa autodidata pode ser desafiador. O mangá permitiu juntar uma coisa que eu gosto com algo que eu precisava estudar. Abriu minha mente e expandiu demais o meu conhecimento”, comemora.

Entre Biancas, Ninas e Nicoles, existem diversas mulheres negras movimentando as estruturas do universo da programação e da computação para que outras também consigam trilhar seu caminho. A engenheira de computação Kizzy Terra é uma delas. Kizzy co-fundou a Alforriah, uma mentoria em ciência de dados e inteligência artificial, e co-criou o canal “Programação Dinâmica”, que hoje conta com mais de 150 mil inscritos no Youtube. Apresentado por Kizzy e seu companheiro Hailson Paz há cinco anos, o canal se propõe a ensinar programação, ciência de dados e inteligência de maneira acessível. 

Seja quais forem os códigos – da dança, das ervas, das mandingas, dos dados -, as mulheres negras seguem criando estratégias para a supervivência apontada por Morena Mariah. “Se os ancestrais deram origem a tudo o que conhecemos hoje na diáspora – de movimentos artísticos à construção de roupas, às danças e a tudo que envolve a arte – isso alcança também o mundo tecnológico da programação”, acredita Bianca.

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