PEQUENOS FUTUROS ANCESTRAIS

Crianças de terreiro mostram que é possível ter uma infância feliz e repleta de aprendizados dentro das religiões de matriz africana.

Reportagem: Edilana Damasceno
Edição: Fred Di Giacomo
Ilustrações: Nícolas Noel
Fotografia: Clara Nascimento

“Eu acho que é legal a gente falar de como pode se pode ter uma infância feliz dentro do candomblé”. Iniciado para Oxum no candomblé Ketu aos 13 anos de idade, Victor Gaia, 24, conta que mesmo 11 anos depois, sente que essa foi a melhor decisão que já tomou na vida: “Eu encarei o amor de perto”.  Victor não é exceção. Como já contamos para vocês, “32% dos praticantes de religiões de matriz africana têm entre 16 a 24 anos, tornando candomblé, umbanda e outras religiões afro-brasileiras as mais jovens entre as formas de fé do nosso país.”

Apesar de o artigo 16 da Lei nº 8.069, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, assegurar o direito ao culto religioso, muitas crianças brasileiras enfrentam dificuldades em permanecerem em religiões de matrizes africanas e, para isso, encaram agressões, xingamentos e o afastamento da família.

Na semana em que celebramos o dia das crianças no Brasil, o data_labe conversou com quatro pessoas que passaram pela iniciação infantil no candomblé em situações diferentes, mas que mantém uma opinião comum: as religiões de matrizes africanas são lugar de criança feliz. 

“O homem cobra é meu amigo”

“Ela era uma criança narcisista e egoísta, mas depois de fazer o santo mudou da água para o vinho”, contam Aline Pereira e Del Bevenuto, mães de Maria Eduarda Bevenuto,11, que há quase 6 anos foi iniciada no candomblé. Para as mães, o processo de iniciação transformou radicalmente a personalidade de sua filha para melhor: “Qualquer pessoa percebia”.

Elas contam que a espiritualidade aflorou fortemente desde quando a menina tinha pouca idade e que, com 4 anos de idade, Maria Eduarda chegou a ver seu pai – orixá dominante em sua cabeça – que é conhecido como Oxumarê, a “cobra arco-íris”. Segundo Aline, sua filha estava brincando com outra criança, quando a amiguinha contou que elas haviam visto um “monstro”:

“Ela ficou muito irritada e disse ‘não fala assim dele, o homem cobra é meu amigo. Ele sempre está comigo, aonde eu vou ele vai’”, conta a mãe. 

Onde há felicidade, também há preconceito

Após o encontro com Oxumarê, as mães, Aline e Del, que já faziam parte do candomblé, decidiram que era chegada a hora de realizar a iniciação de Maria Eduarda na religião. Elas contam que naquela idade seria mais fácil para Maria por em práticas ritualísticas exigidas na iniciação, como se abster de bebida alcóolica, de relações sexuais e do apego ao cabelo. Se para as mães aquele era um lindo momento, para outras pessoas a iniciação de uma pessoa tão jovem era um absurdo: “Eu precisei esconder de uma parte da família pois sabia que eles não iriam aceitar”, relata Del. 

Casa de angola em nova iguaçu chamada Abassá Nangenin e Kafunlegy

O drama vivido por elas não é raro. Apesar de ser comum a prática do batismo de crianças na igreja católica ainda bebês, a iniciação de menores em religiões de matrizes africanas já se tornou caso judicial. Em agosto de 2020, na cidade de Araçatuba, no interior de São Paulo, uma mãe perdeu a guarda da filha de 12 anos para a avó da menina após iniciá-la no candomblé. E em janeiro de 2021, a história se repetiu, em Campinas, também no estado de São Paulo. Nessa ocasião, o Ministério Público denunciou uma mãe por lesão corporal após a passagem da criança por uma ritualística do candomblé.

Para Del, o preconceito e a intolerância religiosa muitas vezes partem de opiniões infundadas e pouco aprofundadas. Ela conta que precisou lidar com a ignorância da família diversas vezes após o processo de iniciação da menina: “Quando acabou a ritualística, ela precisava rezar antes de se alimentar. Um dia ela estava sentada na esteira e minha mãe perguntou o que ela estava fazendo, eu disse que estava rezando e ela reagiu dizendo ‘Como assim? nessa religião vocês rezam?’”, conta.

Quando Victor Gaia e sua mãe, que já era confirmada como ekedji – cargo importante dentro do candomblé, no qual a pessoa não passa pelo processo de incorporação; não é “médium” –  decidiram que ele iria se iniciar no candomblé, eles também precisaram esconder a iniciação de uma parte da família que era evangélica e conservadora. 

O morador da zona norte do Rio de Janeiro explica que o contato com o candomblé, que se iniciou devido ao fato de sua mãe não ter com quem deixá-lo nos dias de culto, tomou o lugar do afeto em sua vida: “O principal que senti foi a alegria e amor quando passei a conviver nas funções e nas coisas mais internas”.

E se para o menino ter sido iniciado aos 13 foi uma experiência incrível, para Camile Fernandes, que foi iniciada aos 11 anos acompanhada de sua irmã de 3 anos de idade, o candomblé é uma das memórias mais vivas e bonitas de sua infância. Em uma segunda-feira comum, sua mãe lhe ligou avisando que ela iria entrar no próximo barco – grupo de pessoas que passam pelo processo de iniciação juntas- e ela adorou a notícia: “Eu sempre quis me iniciar, minha avó era mãe de santo, eu sempre achei lindo e sempre sonhei com isso”, conta.

Candomblé e a escola da vida

O barco em que a jovem Camile Fernandes participou junto com a irmã era composto apenas por crianças, o que tornou a experiência mais fácil. Camile conta que ao ser iniciada também para Oxumarê, ela passou a ter amor pelas coisas:  “Você pega amor a tudo, porque você fica sem nada”, explica. Além disso, ela entende o processo como o maior aprendizado da sua vida: “As pessoas que não conhecem acham que é entrar, perder o cabelo e sair, mas eu evoluí como pessoa. Eu passei a respeitar a comida, não desperdiçar, aprendi a respeitar o próximo”.

Assim como aconteceu com Camile, Del conta que o caso de sua filha não foi diferente e que graças ao candomblé, Maria Eduarda também pôde melhorar como pessoa: “As crianças aprendem a respeitar os mais velhos, a respeitar a natureza, elas passam até a saber a receita de um banho de ervas que é calmante. A criança dentro do candomblé aprende a praticar a fé e a crer no que ela não vê, apenas sente”, explica.

Oxumarê foi no Egbé Omilayó em Moganguá, São Paulo

Para Aline, além de todos os ensinamentos, ser uma criança de terreiro também permite que os pequenos conheçam outras culturas e idiomas do continente africano: “Ela ainda aprende a falar em outra língua, aprende yorubá, bantu, aprende um dialeto novo, então tem muita coisa boa”.

11 anos após sua iniciação, Victor usa da arte para representar aos orixás, sua espiritualidade e ancestralidade. E descreve a infância no terreiro: “No meu ilê tem muitas crianças e eu vejo elas tendo uma infância boa. Eles são amigos dos frangos, amigo dos cabritos, ficam passeando com os animais e eu vejo uma infância feliz, sabe? Uma infância de muito aprendizado ligado às diretrizes da religião, então eu acho bom ressaltar isso também”.

O pedagogo e professor Luiz Rufino e o historiador e babalaô Luiz Antonio Simas não poderiam concordar mais com Victor. Em seu livro “Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas”, os pesquisadores defendem o terreiro como lugar de aprendizado e produção de conhecimento:  “O tambor também é livro e o aguidavi — a vareta sagrada que percute o couro — é caneta poderosa para contar as aventuras do mundo. Eles educaram mais gente que os nossos olhares, acostumados apenas aos saberes que se cristalizaram formalmente nos bancos acadêmicos e escolas padronizadas, imaginam. Saibamos reconhecer, aprender e ensinar as suas falas.”, escrevem.

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