DEVER DE CASA:

COVID-19 e isolamento social aumentam desigualdades na educação brasileira.

reportagem
Elena Wesley

arte e vídeos
Eloi Leones
Giulia Santos

dados
Juliana Marques

edição
Fred Di Giacomo

Mesmo com histórico de maus posicionamentos políticos e agravamento da pandemia, experiências regionais e novas metodologias de ensino apontam caminhos possíveis para a educação no pós-covid.

Faz mais de dois meses que a pandemia do novo coronavírus mudou hábitos e escancarou as desigualdades sociais no Brasil. Apesar do apelo do governador Wilson Witzel, ficar em casa não é seguro para moradores de favelas do Rio de Janeiro assombrados por violentas ações policiais. Já em São Paulo, embora o rico bairro do Morumbi registre o maior número de casos da covid-19, é na periférica Brasilândia onde morrem mais vítimas da doença.

Dados de 2018 mostram como cor/raça e renda afetam o acesso à internet e computadores entre os inscritos no Enem. 23% de brancos com renda de até 3 salários mínimos não têm acesso a internet; esse número salta para 39% de negros com a mesma faixa salarial e chega a 52% na população indígena.

A educação é mais uma peça neste tabuleiro. A adoção do ensino remoto durante o isolamento social, como estratégia de manter os estudantes em contato com os conteúdos, mostrou que estávamos todos enfrentando a mesma tempestade, mas não no mesmo barco. A estudante Mayara Nascimento cursa o segundo ano do Ensino Médio em uma das 130 unidades da Faetec, escola pública profissionalizante no estado do Rio de Janeiro. Pelo celular, a jovem de 18 anos tem dificuldade para acessar os conteúdos e enviar os trabalhos na plataforma online implementada. Na turma dela, muitos desistiram de submeter as avaliações obrigatórias e optaram por estudar pelos livros que já tinham em casa. “Nunca teve EAD lá, então é confuso pra todo mundo, desestimulante, porque parece que você tenta, tenta e não consegue”, diz Mayara.

Em Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo, a produtora cultural Glória Maria concilia atividades do trabalho e voluntariado com o desafio de alfabetizar a filha de seis anos em casa.“Não tem mesa aqui em casa, então a gente improvisa na cama mesmo”.

O Conselho Nacional de Educação sugeriu que as redes minimizem a necessidade de reposição presencial, porém professores, responsáveis e estudantes relatam que os modelos de ensino e avaliação à distância adotados por estados e municípios são insuficientes para garantir a qualidade da aprendizagem.

Falta estrutura também para os educadores. O professor de matemática Fluvio Alves leciona para o nono ano do Ensino Fundamental nas redes municipal, estadual e particular na Zona Oeste do Rio de Janeiro.“Sinto que estou trabalhando muito mais agora do que antes. Não é apenas ministrar uma aula, é todo um planejamento, estudo para manusear as ferramentas e cobrança dos superiores, que não param de mandar mensagens. Eu tive que comprar uma mesa digitalizadora do meu próprio bolso, porque não tenho como ensinar matemática sem mostrar como se resolve o exercício”.

Todos contra a educação
Muito antes da era covid-19, a educação pública no Brasil estava na mira de políticos e empresários. Basta lembrar que a PEC do Teto de Gastos do governo Temer congelou os investimentos no setor por vinte anos, e que a reforma do Ensino Médio permitiu o uso do Fundeb para custear cursos a distância desenvolvidos pelo setor privado.

Dez anos depois de sua regulamentação, o fundo social do Pré-Sal também sofre ameaças. Os recursos assegurados à saúde e educação podem ser destinados ao pagamento da dívida pública, caso o governo Bolsonaro consiga aprovar a proposta de extinção dos fundos públicos que tramita no Senado. 

Confira nessa linha do tempo como propostas e decisões políticas em nossa história recente indicam como chegamos até aqui e para onde podemos ir no pós-Covid.

O cenário desafiador ganha mais obstáculos com a pandemia. A recessão econômica tende a se agravar com o aumento dos gastos não planejados e a paralisação de atividades por conta do isolamento. Exemplo disso é a realocação de verbas já garantidas à educação pública por emendas parlamentares para o combate à covid-19. Dos R$2,7 bilhões previstos para a área, mais de R$890 milhões foram captados pelo Ministério da Saúde.

Que caminhos são possíveis, então, para uma educação de qualidade no pós-pandemia? 

Sem Fundeb não há educação básica
O funcionamento das escolas públicas brasileiras em 2021 depende de uma votação: a permanência do Fundeb. Com validade para dezembro deste ano, o fundo representa  quatro de cada dez reais investidos na educação básica para manutenção das escolas e valorização dos professores, isto é, para pagar salários, equipamentos, material e transporte escolar. O mecanismo distribui recursos a fim de que todos os municípios e estados tenham pelo menos o valor mínimo nacional por aluno, que é definido todo ano pelo MEC. Em 2020, o mínimo é de R$ 3.643,16.Na prática, a PEC 15/2015 vai definir de onde sai o dinheiro, para onde ele vai e como medir se está dando certo. Embora arrecade mais, a União é quem menos contribui. Dos R$166 bilhões do Fundeb 2019, apenas R$15 bilhões vieram do governo federal. O texto da relatora Professora Dorinha (DEM-GO) duplica a complementação da União ao que é arrecadado pelos estados, passando de 10% para 20% até 2026.

A proposta está pronta para ser votada na Câmara dos Deputados, mas tem perdido a vez para as pautas ligadas ao enfrentamento da covid-19. Aliás, o agravamento da crise durante a pandemia já é citado por representantes do governo como fator relevante para reduzir o pouco acordado até agora. O deputado General Peternelli pretende debater o percentual, alegando que, além do coronavírus, “o PIB tinha uma previsão e agora diminuiu”. 

Além desse problema, existem algumas “pegadinhas” que entidades da categoria e movimentos sociais ainda tentam reverter. A PEC dá brecha para que o governo federal utilize recursos de programas de apoio à alimentação escolar – como o salário-educação e o Pnae – para fazer a complementação, ou seja, tirar de um lugar para pôr no outro ao invés de trazer novas verbas. A coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), Andressa Pellanda, ressalta que a proposta era mais progressista, mas cedeu à pressão do presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), que chegou a ameaçar a aprovação e intitular como “fora do mundo real” a reivindicação de professores pela universalização do piso nacional, que não chega a R$3 mil. A declaração foi feita logo após um evento organizado por fundações ligadas a bancos e outras empresas privadas.

“Ao invés de calcular o que é necessário para melhorar a educação e aí definir de onde virão os recursos, o modelo defendido por Maia e pelo Ministério da Economia considera outros orçamentos dos estados e municípios, fora dos impostos que já são obrigatórios pro Fundeb. Ou seja, onera ainda mais quem já tem menos recursos e desonera a União. Descentralizar os recursos é ruim para a barganha política, causa perda eleitoral e ainda tem essa influência de movimentos liberais que pensam que a gente tem que investir menos na educação”, explica.

“Não é só financiamento, é gestão!”: o exemplo que vem do sertão 
Investimento aliado a uma gestão mais profissional e à valorização dos profissionais. Esses são os ingredientes que deram certo em Sobral. Assim como outros municípios do interior cearense, a cidade proibiu prática comum entre prefeitos e vereadores de indicar amigos e cabos eleitorais – nem sempre capacitados para a função – aos cargos de gestão nas secretarias de educação e nas escolas. Como opção, adotaram um sistema de seleção no qual apenas profissionais da rede podem participar. 

O polo educacional da região conta com uma escola de formação continuada, cujos cursos de especialização são certificados por fundações privadas ou universidades públicas. A alfabetizadora Bruna Bastos leciona para 16 crianças do segundo ano do Ensino Fundamental da Escola Raimundo Santana e destaca o impacto das políticas de valorização no comprometimento dos professores.

“Cada um se aprofunda na sua área. Eu fiz ‘Habilidades de Leitura e Compreensão’, ‘Competências Emocionais’ e outros. Isso motiva muito o professor. Na pandemia, muitos foram de máscara e álcool em gel na bolsa entregar material didático pessoalmente na casa dos meninos. Ver um leitor fluente, uma nota bota nas avaliações, é a maior recompensa”.

O uso e a apropriação de tecnologias por professores e coordenadores pedagógicos está longe do ideal. Mais da metade das escolas em áreas urbanas nunca ofereceram formação a nenhum professor para uso de computador e internet em atividades de ensino.

A unidade do distrito de Jaibaras está entre as 77 escolas do Ceará presentes no ranking das 100 melhores do Brasil no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – o Ideb. A escola tirou 7,1 nos anos iniciais, enquanto a média nacional chegou a 5,8. No dia a dia na escola, o reforço escolar no contraturno é regra geral e começa já nas primeiras semanas do ano letivo, com três horas e meia diariamente no turno da manhã. Todo semestre o desempenho dos alunos é gravado em vídeos individuais e analisado por funcionários da Casa da Avaliação Externa, que consideram o nível de leitura, compreensão, escrita e conhecimento em matemática.

A metodologia de Sobral é uma das bandeiras da deputada federal Tabata Amaral, que pesquisou a experiência da cidade em 2014 e 2015. A cientista política afirma ter visto políticas replicáveis em outros municípios do país, mas que esbarram em decisões políticas.

“Não vi coisas de outro mundo. Quando você vem da escola pública da periferia de São Paulo e vai a Sobral, fica se perguntando quantos amigos seus teriam sido salvos ou estariam vivos se a gente tivesse uma escola pública melhor. Questiona também por que essas boas práticas são tão isoladas”.

Tabata também defende que 2,5% da complementação do Fundeb seja concedido a escolas que apresentem “evolução dos indicadores educacionais”, como o Ideb. A proposta é criticada por grupos que temem uma possível exclusão de alunos com notas mais baixas e aumento da desigualdade. A deputada, no entanto, acredita que a premiação pode funcionar, se o aporte estiver condicionado a obrigações, entre elas a de aumentar a cobertura de creches e estruturar a carreira dos professores.

“A remuneração diferenciada é para toda a escola – merendeira, faxineiro, segurança, diretor – porque todos são importantes no processo e responsáveis pelo resultado final. Sobral tem essa visão de não deixar ninguém pra trás. A diretora que ficou em primeiro no Ideb vai pra escola que ficou por último. Por lei, eu não tenho como proibir a indicação política, por isso esse percentual para quem se esforçar por uma educação mais inclusiva”, explica.

Tecnologias como aliadas
É pensando em uma educação para todos que o pedagogo Doug Alvoroçado aposta no potencial da cultura maker para promover uma aprendizagem ativa. As salas de aula ganham cara nova em laboratórios de colaboração e com o uso de ferramentas eletrônicas,  conectadas com a filosofia “faça você mesmo”, que está cada vez mais presente no cotidiano dos jovens por meio das redes sociais. Doug sugere a criação de estratégias com as empresas privadas por um acesso à tecnologia mais amplo, educativo e responsável com os gastos públicos.

Especialista em Atendimento Educacional Especializado, cita o Google for Education como ferramenta a ser apropriada. O programa da multinacional consiste em uma plataforma gratuita com recursos de incentivo à criatividade para professores e alunos. O professor ainda salienta que as emissoras de TV e rádio poderiam ser melhor aproveitadas para exibição de conteúdo educativo e sem a necessidade de alto investimento dos governos, já que são concessões públicas.

“Já que não tem futebol nem novela por causa da pandemia, por que não ter um preparatório pro ENEM? A gente põe tudo na conta da internet, como se fosse a última mídia salvadora. Muita gente não tem acesso, e o ensino tecnológico não reforça a desigualdade, apenas mostra que já existe e que nós precisamos lutar contra”.

Domicílios com acesso à internet via banda larga fixa conseguem transmitir uma hora de séries ou filmes em plataformas de streaming três vezes mais rápido do que aqueles que só podem acessar a rede via celular (3G e 4G). 

Longe da experiência vivenciada pela educação pública na pandemia, quando a tecnologia tem servido apenas de canal de transmissão do professor para o aluno, especialistas na área veem a educomunicação como referência positiva no uso das ferramentas. O campo incorpora tecnologias diversas à prática na sala de aula, como a produção de conteúdo para rádio, TV e mídias sociais, a exibição de desenhos educativos como Vila Sésamo e Castelo Rá-Tim-Bum, ou ainda a aplicação de elementos ligados à cultura de jogos e de HQs, tão presentes no dia a dia dos estudantes.O conceito já é política pública desde 2004 na rede municipal de São Paulo, que abre quatro mil vagas por ano para quinze cursos de formação de professores, cujo custo para a secretaria não ultrapassa 300 mil reais. O Núcleo de Educomunicação também oferece gratificação para quem dedica de 10 a 40 horas mensais para atuar em projetos com os estudantes. Desde 2018, Bruno Oliveira ministra no curso de Educomunicação, com o objetivo de tornar a trajetória escolar mais lúdica e conectada com a realidade. O educomunicador pontua que “qualquer recurso pode ser tecnologia, não apenas o digital”.

“O método fala mais do que a ferramenta em si. Um trabalho solicitado com ordem ‘pesquisa aí’ pode ser feito com copia e cola na internet. Com outra abordagem, a gente teve o Ensino Fundamental II apresentando trabalhos sobre projetos de descarte de óleo de cozinha no bairro. Tornar os jovens produtores de conteúdo ajuda a se reconhecerem como cidadãos e a se relacionarem com o currículo, cria repertório”, argumenta.

O professor e Diretor Acadêmico da Fundação Santillana, Miguel Thompson, defende que os educadores sejam protagonistas na elaboração de metodologias que levem em conta as ferramentas tecnológicas de forma estratégica. Isso porque o processo tem sido encabeçado pelos interesses do mundo corporativo, que viu na educação básica “um nicho de mercado para propostas ‘inovadoras’ que permitem hackear o orçamento do Estado, olhando mais para os lucros dos acionistas do que preocupadas com o processo de ensino-aprendizagem e entregando certificados sem garantir qualidade na formação”.

Na contramão do presidente Jair Bolsonaro que defende  o EAD para baratear a educação sem sequer considerar a necessidade de investir em uma conexão de internet melhor para todos, os profissionais da área fundamentam modelos de troca que reforçam a postura criativa exigida pela cidadania e pelo mercado de trabalho. Em um momento em que as desigualdades sociais se aprofundam, a sobrevivência à covid-19 depende do equilíbrio entre educação e desenvolvimento econômico. A conta depende das escolhas que faremos nesta pandemia, uma equação que o coronavírus nos obriga a resolver. 

Esta reportagem faz parte da parceria entre o data_labe, a Gênero e Número, a Énois e a Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (COVID-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias

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