reportagem
Elena Wesley
arte
Giulia Santos
dados
Juliana Marques
edição
Fred Di Giacomo
Rio de Janeiro registra aumento no consumo de bebidas e na violência doméstica; CAPs do subúrbios têm que lidar com afastamento de funcionários.
Farinha, leite, manteiga. As mãos manuseiam os ingredientes, enquanto a mente se desloca da receita para mergulhar em preocupações. A venda diária de 800 salgadinhos foi reduzida para espaçadas encomendas desde que, por conta da pandemia de Covid-19 que já matou mais de 1.500 pessoas no Brasil, Juliana Siqueira fechou a barraca de lanches que administrava com a mãe na favela Nova Holanda, Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro. Mais do que o prejuízo financeiro, a jovem de 22 anos calcula o quanto a mudança na rotina tem afetado sua autoconfiança.
“Parece algo tão simples, mas vender era o que me motivava a alcançar outros planos. Eu fazia pré-vestibular à tarde e ficava na barraca à noite. Agora, não estou conseguindo me acostumar a estudar à distância e trabalhar só em casa. Às vezes eu choro e dá vontade de jogar tudo pro alto. Tenho me esforçado muito para o Enem e, mesmo assim, bate um medo de não ser boa o suficiente. A sala de aula me inspirava a sonhar, a acreditar que posso chegar aonde quiser”, conta a jovem, de 22 anos, que ainda se decide entre cursar Serviço Social ou Biologia.
De acordo com o psicólogo Stallone Pereira, o relato de Juliana não é exceção entre os jovens da Maré. Já antes da pandemia, desmotivação e falta de perspectiva figuravam entre as principais demandas dessa faixa etária no atendimento psicossocial que realiza na entidade filantrópica Luta Pela Paz, localizada no Complexo da Maré.
“Mesmo fazendo cursos de qualificação, os jovens temem que seu currículo não seja suficiente para ingressar ou ascender no mercado de trabalho. Daí passaram a questionar como será depois da quarentena: se as empresas estão demitindo, imagine contratar quem não tem experiência? Boa parte deles também está na informalidade, vendendo balas e biscoitos nos engarrafamentos da Linha Amarela e Vermelha (vias expressas que cortam a Maré).”, explica Stallone.
A impossibilidade de circular pela favela, que é – segundo o psicólogo – um espaço de convivência e troca que corrobora para a identidade dos jovens, também contribuiu para o aumento de casos ligados à ansiedade e depressão, que se expressam por violência autoprovocada e ideação de suicídio – que passaram a ter casos registrados diariamente pelo Luta Pela Paz durante as três primeiras semanas de isolamento.
Pânico nos CAPS
Nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), mensurar o novo cenário da saúde mental em tempos de coronavírus ainda é um desafio já que as equipes se ajustam ao atendimento remoto e às novas escalas. Em uma das unidades de São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio, o quadro de funcionários caiu pela metade com a liberação dos profissionais que se encaixam nos grupos de risco ao coronavírus ou daqueles que dependiam de algumas linhas de transporte público intermunicipal, serviço suspenso pelo governador Wilson Witzel (PSC) para reduzir a circulação de pessoas. Quem está em casa monitora os pacientes remotamente, enquanto os profissionais restantes se organizam em plantões presenciais em dupla.
Somando 88 casos e cinco óbitos até a última terça-feira (14), a cidade já começou a sentir reflexos da pandemia nos relatos dos pacientes, conforme compartilha a psicóloga Tainara Cardoso: “a apreensão com o cuidado com as crianças e o medo de uma acentuação da pobreza apareceram logo. Em seguida, vem o receio de violência doméstica e outros conflitos familiares.”
O receio da violência doméstica é justificado. Logo no começo do isolamento social, estabelecido para combater a Covid-19, o estado do Rio de Janeiro registrou aumento de 50% nos casos de violência contra a mulher. No estado de São Paulo, o assassinato de mulheres em casa praticamente dobrou com a quarentena.
“É importante dizer que o conceito de casa nem sempre significa conforto para todos.”, diz Tainara Cardoso, “A família pode também estar associada a relacionamentos complicados, de muita imposição e agressividade verbal. Tudo isso pode influenciar num agravamento do quadro clínico”.
Grupo de risco para a depressão?
Um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre transtornos mentais confirma o quadro apresentado pelos profissionais entrevistados nesta reportagem, ao apontar que o risco de ser acometido pela depressão pode ser maior devido a fatores como pobreza, desemprego, doença física e problemas causados pelo uso abusivo de álcool e drogas. É considerado consumo excessivo a ingestão de cinco ou mais doses de bebida em um único dia ou momento, hábito recorrente para aproximadamente 25 milhões de brasileiros, segundo levantamento sobre uso de drogas da Fiocruz publicado em 2017.
A OMS recomendou na última terça que os governos restrinjam o acesso a bebidas alcoólicas devido ao risco de distúrbios da saúde mental e doenças, o que pode aumentar a vulnerabilidade ao coronavírus. Durante a primeira quinzena de isolamento, a rede Guanabara, que abastece majoritariamente bairros do subúrbio e municípios metropolitanos do Rio de Janeiro, já havia registrado crescimento de 20% na venda dos produtos. Em um momento propício à procura de opções de escape, a Alcoólicos Anônimos tem investido em reuniões online, a fim de que seus membros não desanimem. De acordo com a organização, a adesão aos encontros à distância chegou a superar a frequência presencial em alguns grupos. Entretanto, a dificuldade de acesso a dispositivos móveis e de conhecimento tecnológico ainda são barreiras a serem vencidas: “Ainda existem grupos que não implantaram suas reuniões à distância, o que nos preocupa muito. Para nós a convivência, a troca de experiências e o contato pessoal é muito importante na recuperação”, reforça uma das coordenadoras do comitê do A.A. que preferiu não se identificar
É da falta desse contato pessoal que se queixam os atendidos pelo Centro de Valorização da Vida (CVV). Referência na prevenção ao suicídio, a instituição tem verificado a predominância de menção à solidão nas ligações para o telefone 188 e conversas no chat. João Alexandre, um dos quatro mil voluntários do CVV, destaca, no entanto, que o período é mais difícil para os idosos por conta da vulnerabilidade ao vírus e à mudança de rotina. A taxa de mortalidade do coronavírus em idosos pode chegar a quase 15%.
“Eles são os mais impactados com a questão emocional. A velhice ainda é vista de forma pejorativa: o que é velho está gasto e pode ser descartado.”.
João afirma que a necessidade do confinamento remete a violências recorrentes para o moradores de periferia, que podem gerar o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), doença que acomete cerca de meio milhão de pessoas no estado, conforme revelou pesquisa realizada pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2017.
E existem iniciativas voltadas para os negros, parcela que mais sofre com esse tipo de violências no Brasil? Em 2018, o psicólogo Juan Telles criou Clínica do Afeto, uma iniciativa de promoção de saúde e bem estar com ênfase no atendimento e na discussão das relações raciais a partir de encontros itinerantes. O pesquisador argumenta que as políticas de exclusão e extermínio estabelecidas contra a população negra brasileira desencadearam um imaginário racista pelo qual acredita-se que “o corpo do homem negro é forte, viril e invulnerável, que não precisa de cuidados”.
“A Clínica é um espaço de acolhimento e libertação das amarras impostas pelas opressões vividas que, sem dúvida, se intensificam em um contexto de pandemia, quando as poucas políticas públicas implementadas pelo Estado são evidenciadas”, avalia.
Com os encontros presenciais impedidos, a Clínica do Afeto tem usado as redes para atuar. É nas redes, mais precisamente no Facebook, que se encontram grupos como “Quarentena em Wakanda”, onde pessoas negras compartilham suas experiências com o isolamento.
A professora de biologia Raquel Albuquerque, membra do “Quarentena em Wakanda” e grávida de 28 semanas, criou um grupo com outras gestantes para obter sugestões de cuidados para corpo e mente. Com propensão à eclâmpsia, Raquel optou por mudar para a casa da mãe: “tenho ansiedade e faço uso de medicação. Deixei minha casa na Baixada Fluminense para ficar com minha mãe no interior do estado. Passei noites em claro, desesperada, pensando que minha filha não teria uma roupinha ou que morreria no parto, porque até as doulas foram proibidas de atuar”. **
** Atualizado em 27/04/2020. Embora as leis 7.314/16 e 6.305/17 assegurem a atuação das doulas, as profissionais de atenção ao parto têm encontrado resistência por parte das unidades para realização dos atendimentos durante a pandemia. A Associação de Doulas do Rio de Janeiro informou que tem instruído as associadas sobre os cuidados necessários para evitar contaminação e que está coletando denúncias de impedimento de atuação das doulas pelo email [email protected].
* O Centro de Valorização da Vida (CVV) dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Se você está em busca de ajuda, ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br.
Esta reportagem faz parte da parceria entre o data_labe, a Gênero e Número, a Énois e a Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (COVID-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias