CRIMINALIZAÇÃO DO FUNK

O que o funk pode aprender com o Movimento Black Rio.

reportagem e entrevista
Gabriele Roza

A repressão policial faz parte da realidade dos bailes do subúrbio desde a década de 70. Os bailes passaram do soul para o 150 bpm, mas a cultura negra segue criminalizada no Rio de Janeiro.

Era 1976, mas poderia ser um relato de 2019. Noite de lançamento da LP Soul Grand Prix no Guadalupe Country Clube, a beira da Avenida Brasil. O público foi bem maior do que o esperado. O espaço, que tinha a lotação de 6 mil pessoas, naquela noite recebeu mais do que o dobro, 15,9 mil. Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, um dos principais organizadores do Movimento Black Rio, conta que quando a piscina do clube e a passarela na Brasil já estavam ocupadas com as pessoas dançando, a tropa de choque da aeronáutica chegou para acabar com a festa:

‘‘Foi fechando a Avenida Brasil, aí chegou a tropa de choque 2h da manhã para dispersar a galera, entraram no clube, todo mundo dançando. O cara veio e eu no palco. Quando ele veio, eu imediatamente falei ‘galera, a presença da polícia que tem um papel de resguardar enquanto cidadão se passou presente, nós não estamos em nenhum desordem, só estamos ocupando massivamente o nosso clube que é nosso’, aquele papo. Aí o cara tá chegando, quando ele chegou perto de mim ‘olha, muito obrigado porque a ordem eram quebrar o palco, acabar com a festa e meter o pau em geral’, fazer o que fizeram agora em Paraisópolis. Ele ‘acaba o baile agora’, falei ‘vamos devagar, vamos acender a luz, em uma hora a gente vai esvaziar. Se o senhor der uma porrada aqui, vai subir’, aí ele balançou.’’

Dom Filo (esq.) e o sociólogo Carlos Alberto Medeiros no Clube Renascença em 1972. Acervo Cultne.

A repressão policial faz parte da realidade dos bailes do subúrbio carioca desde os bailes ‘blacks’. De 1970 a 2019, os bailes passaram do soul para o 150 bpm, mas o cenário continua pouco favorável para uma juventude, preponderante negra, que busca diversão e liberdade de expressão perto de casa. Qualquer semelhança com a repressão que o funk passa hoje, não é mera coincidência. Na época, era a ditadura militar que perseguiu e monitorou o movimento cultural. Hoje, são governos autoritários e inconsequentes que fortalecem a narrativa de repressão aos bailes de favela.

‘‘A partir dos anos 70, quando a gente chega e faz os bailes no Renascença, começa o monitoramento. ‘Por que essa união de jovens, 2 mil jovens se reunindo, fazendo o que?’. O que eles fizeram, o Dops, determinam que as delegacias façam incursões e publiquem os relatórios para avaliação. Então, o Dops coloca lá um cara infiltrado negro, a gente saca que aquele cara não é do movimento, é um estranho, ele querendo se passar por um dos nossos, mas a gente sabe que a gente tá sendo monitorado. A Soul Grand Prix sempre foi a primeira a lançar um disco, primeira a arrebentar no mercado, chegou na frente do Roberto Carlos, teve música em novela. Aí a repressão ‘opa esses caras, é essa aqui, a Soul Grand Prix’, aí começou a pressão de querer além de monitorar, começou a cercear, ‘tem que ter licença pra fazer o baile’. Como eu fiz engenharia e até os 15, 17 anos eu cuidava dos negócios do meu pai, eu tinha uma visão de negócio e eu levei aquilo para dentro do movimento, criei a Soul Grand Prix Produções, montamos um escritório e aí pagamos os impostos, quem vai dizer que não’’, conta Filó que chegou a ser sequestrado pelos militares e levado para o DOI-CODI após um baile.

Foto: Almir Veiga

‘‘Nós éramos uma grande ameaça, você imagina jovens negros dançando. A estimativa era um milhão dançando semanalmente, várias equipes. Só que nessas equipes, nem todo mundo tinha consciência política, mas uma célula política pensante refletia pra todo mundo e para eles era muito difícil isso. Quando me pegaram, me botaram lá embaixo no porão da polícia do exército lá na PF, me perguntaram isso tudo e eu me defendi dizendo ‘se eu sumir, 15 mil vai invadir isso aqui. Se eu não voltar hoje, amanhã isso aqui vai ser invadido’, blefe né. Aí o que eles pensaram, melhor não porque qual era o esquema, eles iriam reforçar tudo que eles não queriam. Seria um tiro no pé no mito da democracia racial porque eles diziam que não existia racismo. Então resolveram mudar a estratégia, ‘não bate, se bater vai ativar, então vamos desqualificar’. Aí não deu, aí foi barra pesada mesmo.’’

A criminalização do soul e do funk repete a história do samba, das religiões de matriz africana e da capoeira, que chegou até a entrar no Código Penal de 1890 com um aviso de punição para quem praticasse. Também em 1976, o samba, que hoje é reconhecido como a principal manifestação cultural brasileira, foi impedido de ser praticado por um dos seus protagonistas, como relembra Joel Paviotti:

‘‘Em 1976, a polícia invadiu o Ensaio da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Mestre Cartola, um dos fundadores da agremiação, sentou no asfalto para protestar e lamentar mais uma operação policial contra o Carnaval Carioca. Na época, apesar da festa já aquecer a economia da cidade, o Samba era considerado pelas forças policiais como bagunça. Antes da construção do Sambódromo, os ensaios e desfiles ocorriam nas ruas do Rio, e a reunião das escolas eram constantemente interrompidas pela Justiça, Polícia e Ministério Público.’’

Foto de Eurico Dantas

‘‘Hoje eles saíram do armário, vão lá e fazem o que aconteceu em Paraisópolis, asfixia, mata, da porrada. Mas o que tem hoje acontecia antes, a galera saia do baile era dura. Recebia duas duras e na terceira em cana porque não tinha documento. Não trabalha? Vadiagem. Uma, duas, três vadiagens você ia preso. Quem sofria? Os negros. Esculachava, pegava os pentes, jogava fora. Não tinha celular pra gravar a dura que a gente levava, a porrada que a gente levava. Nem sabemos quem matou o Jornal, um dançarino. Ele sumiu, ele e vários outros. Isso acontecia, naquela época existia uma polícia perigosíssima. No Rio de Janeiro tinha uma polícia especial chamada Invernada de Olaria. Nós, negros, quando víamos aquele camburão cinza com faixa amarela, a gente metia o pé porque era entrar e tchau, não voltada. Invernada de Olaria, caiu lá já era. Era barra pesada, isso sem falar nos Homens de Ouro, a galera da Baixada sumia, em plena ditadura. Imagina o que a gente não sofria, não tinha um celular pra registrar.

Foto: Almir Veiga

Agora Paraisópolis vai surgindo, só vai pipocando imagens, aí o governador não tem o que falar. Mas antigamente eles davam uma pancada localizada, hoje a pancada está atingindo a todos. Isso é ruim, mas eu analiso positivamente. Talvez eu posso nem estar aqui pra ver o resultado, mas quando dá pancada geral, essa pancada vai fazer com que todos acordem e fará com que novos atores surjam. Nós estamos vivendo hoje de forma bem mais explícita o mesmo ódio, a mesma repressão e o nosso futuro está nas mãos do nosso povo acordar. Agora vai ser com dor? Sempre foi. Agora vai ser com sangue? Talvez mais do que nunca, infelizmente. Porque eles sabem que não tem volta, não tem volta.’’

Saiba mais sobre o tema em: ‘‘RELATÓRIO DE PESQUISA COLORINDO MEMÓRIAS E REDEFININDO OLHARES: Ditadura Militar e Racismo no Rio de Janeiro’’

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