VISIBILIDADE LÉSBICA

As pautas do movimento e a produção de dados têm pressionado o agendamento público das mulheres lésbicas

reportagem
Fernanda Távora
Hannah de Vasconcellos

arte
Giulia Santos

foto
Gilberto Vieira

Como a invisibilidade de mulheres lésbicas fomenta a violência cotidiana sofrida por elas e cria barreiras contra o acesso às políticas públicas de saúde, emprego e segurança.

Em agosto de 2017, o projeto de lei do Dia da Visibilidade Lésbica foi votado para entrar calendário do município do Rio de Janeiro. Proposto pela vereadora Marielle Franco – mulher negra, favelada, lésbica e defensora dos direitos humanos assassinada no início deste ano –  o PL pretendia tornar o dia 29 de agosto uma data para debater e promover a visibilidade das mulheres homossexuais e trazer à tona as pautas mais importantes do movimento, como saúde, lesbofobia e a falta de dados para o embasamento de políticas públicas.  

O projeto de lei passou por votação, mas não foi aprovado por uma diferença de apenas dois votos: dos 19 necessários para a aprovação, 17 foram a favor da oficialização da data. Apesar da aparente derrota na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, o movimento por direitos das mulheres lésbicas compreendeu a força da votação apertada e ganhou fôlego para votar mais uma vez em breve.

Não é à toa que, apesar de não estar no calendário oficial, o dia 29 de agosto é conhecido como o Dia da Visibilidade Lésbica. As mulheres da pauta L organizadas politicamente têm ganhado cada vez mais força na agenda pública – resultado de anos de luta dos movimentos sociais em torno do tema. Nessa mesma data, no ano de 1996, aconteceu o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas no Brasil, o SENALE. Esse evento é um marco histórico para o movimento de mulheres lésbicas brasileiras. Desde então, já são 22 anos que a data carrega a marca da luta do movimento pela presença da pauta sobre elas na causa LGBTI e na  agenda pública da sociedade civil.

“Para além da comemoração, a data tem como objetivo dar visibilidade para empregabilidade e para saúde, que são as mais emergenciais para nós, mulheres lésbicas. Na questão da saúde, a gente é invisível desde o atendimento básico.”, destaca Michele Seixas, assistente social e ativista das Coletivas Sapa Roxa, Candaces, diretora executiva do Grupo Felipa de Souza de mulheres negras lésbicas, Articulação Brasileira de Mulheres Lésbicas e representante da pauta das lésbicas na ONU Mulheres do Brasil.

A saúde é uma das pautas mais importantes para o movimento lésbico. É nessa esfera que a invisibilidade das pautas homossexuais das mulheres fica evidente: questões como o atendimento básico de saúde da mulher e reprodução assistida – que é um dos direitos reprodutivos garantidos pelo SUS – são tratados pelo sistema médico como algo que não faz parte da realidade das mulheres lésbicas.

A homossexualidade ainda não está no horizonte da prática médica. Não são poucos os relatos de mulheres que não passam pelo exame preventivo, principal estratégia para detectar lesões e fazer o diagnóstico de câncer do colo do útero nos primeiros estágios. Isso porque o protocolo médico não considera o exame necessário para mulheres que não mantêm relações sexuais com homens. Seja por preconceito ou desinformação, orientações sobre sexo seguro também não fazem parte do atendimento médico. “A invisibilidade acontece no consultório quando perguntam, de primeira, quantas vezes eu fiz sexo com o meu companheiro na semana. A sociedade é heteronormativa e os profissionais não aprendem na academia a lidar com esses casos. Mesmo já sabendo a resposta, procurei a Clínica da Família para saber sobre reprodução assistida. Ao final, a enfermeira disse ‘eu não sei o que fazer com você’”, conta Michele Seixas.

Segundo Michele Seixas, por conta da falta de preparo dos profissionais de saúde, o Estado do Rio ainda não garante o acesso à reprodução assistida pelo SUS para mulheres lésbicas. Por fazer parte do planejamento familiar, a reprodução assistida deveria estar no atendimento básico para todas e todos. Além disso, esse tópico também é uma das diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. De acordo com o documento, os profissionais de saúde devem prezar pela “garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e o respeito ao direito à intimidade e à individualidade” de pessoas LGBTI.

Os últimos dados sobre a população lésbica os quais o data_labe teve acesso são do Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas, lançado pelo Ministério da Saúde em 2006. Nele, são destacados os constrangimentos e esforços necessários para ter acesso ao básico no sistema médico. Segundo o dossiê, em 2004, 45% das mulheres que informaram a própria orientação homossexual durante o atendimento apontaram algum tipo de negligência. Michele Seixas explica que o mais comum no atendimento de mulheres lésbicas é a falta de respostas e a desconsideração das especificidades. “As práticas sexuais são outras, a gente precisa de um atendimento diferenciado, mas alguns ignoram e outros são desinformados. Têm companheiras morrendo de câncer do colo do útero por falta de informação e atendimento adequado.”, alerta.

Quase 12 anos depois do dossiê, hoje o atendimento das mulheres lésbicas não parece ter mudado muito. Depois de diversas tentativas de atendimento em reprodução assistida no SUS, Michele Seixas e a companheira não tinham outra saída a não ser as clínicas privadas. Ainda assim, a invisibilização das especificidades das mulheres homossexuais continuou. Michele  conta que, durante uma consulta ginecológica em uma clínica particular, pressupondo a heterossexualidade mesmo diante de duas mulheres, em nenhum momento houve uma pergunta sobre orientação sexual e práticas sexuais e nem a apresentação de opções de exames menos invasivas para mulheres lésbicas.

Os dados do infográfico abaixo traduzem o cotidiano das mulheres lésbicas em atendimentos médicos, segundo o Dossiê Saúde Mulheres Lésbicas.  Dentre os casos relatados, mais da metade das mulheres não assume a homossexualidade durante a consulta por conta do constrangimento. Quando assumem, percebem uma maior rapidez na consulta, sinal de negligência, e que exames considerados essenciais para a saúde da mulher não são solicitados pelo médico. Isso reflete diretamente nos dados sobre a cobertura do exame preventivo: mulheres homossexuais fazem menos exames de papanicolau, exame ginecológico usado na prevenção do câncer do colo do útero, em comparação com mulheres heterossexuais.

O Dossiê do Lesbocídio no Brasil

A falta de dados sobre a população lésbica afeta a criação de políticas públicas voltadas para elas e invisibiliza as pautas mais urgentes do movimento. Além da saúde, a violência é uma questão que toca no direito à vida e à existência digna dessas mulheres. O Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, lançado em março deste ano, é a primeira pesquisa que traz números sobre violências e mortes causadas pela lesbofobia. Lesbocídio é a morte, seja por negligência médica, assassinato, suicídio, etc. ocasionada pelo preconceito contra lésbicas. A pesquisa é contínua e desenvolvida pelo Núcleo de Inclusão Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pelo projeto Nós: Dissidências Feministas. “A ausência de informações sobre as mortes de lésbicas no mundo inteiro é assustadora.”, relata Suane Soares, pesquisadora e participante do grupo responsável pelo dossiê, o Lesbocídio – histórias que ninguém vê.

No primeiro ano de pesquisa, em 2014, foram registradas 16 mortes de mulheres lésbicas. Em 2017, esse número aumentou para 54. Ainda segundo o dossiê, cerca de 57% das mulheres lésbicas mortas entre 2014 e 2017 tinham até 24 anos. Além disso, as mais afetadas pela violência foram as lésbicas consideradas “não feminilizadas”, ou seja, aquelas que não atendem ao estereótipo feminino imposto pela sociedade. Os dados da pesquisa não são oficiais porque não há registro oficial sobre essas mortes. Por conta da subnotificação e do despreparo dos sistemas do governo para documentar tais mortes, grande parte da coleta de informações da pesquisa foi feita através da mídia tradicional e redes sociais, o que significa que os números podem ser bem maiores do que eles aparecem no dossiê.

O lesbocídio é uma violência que expõe não apenas a questão LGBTI, mas também a misoginia e o machismo presentes na sociedade brasileira. As mulheres lésbicas são violentadas simbólica e fisicamente de maneira constante e grande parte dessas violências culminam em morte. Segundo o dossiê, 83% dos casos de assassinato são cometidos por homens que não tem qualquer ligação com a mulher assassinada – diferente do feminicídio, no qual a maioria dos casos de assassinato de mulheres acontece no ambiente doméstico por conhecidos próximos.

A ausência de dados e a falta de recortes necessários como de raça e território – recortes esses que garantiriam o entendimento das nuances dessas mortes – dificultam a criação de políticas públicas e até mesmo a identificação dos tipos de violência que as mulheres lésbicas sofrem. Sem essas informações, as estratégias para pressionar o estado e a sociedade tornam-se limitadas. “Acreditamos que o lesbocídio é um fenômeno social e, como tal, requer atenção para além do momento da morte em si, mas também o mapeamento dos ciclos de violências que culminaram em mortes para a adoção de medidas efetivas que cessem esses ciclos. Somente por meio do conhecimento e do estudo das especificidades das mortes lésbicas, vinculadas às demais opressões que recaem sobre essa população, é que será possível compreender tais processos cíclicos de vitimação.”, explica Suane Soares.

As ações das organizações civis em busca desses dados são importantes para trazer essa discussão para a agenda pública, já que uma das principais pautas do movimento lésbico, e LGBTQ, é o direito de circular pela cidade sem temer agressões por ser quem se é. Ou seja, o direito de existir. Políticas públicas que trabalham nessa intenção de trazer à luz as discussões sobre a luta das mulheres lésbicas são necessárias para proteger essa população da violência cotidiana. “O lesbocídio precisa se tornar uma questão a ser combatida por meio das políticas públicas nacionais e internacionais referentes ao direito a uma vida digna, à segurança da população, aos direitos das mulheres, da população LGBTI e,  principalmente, aquelas referentes à educação e à conscientização na luta contra todas as formas de discriminação e discursos que levem aos crimes de ódio.”, enumera Soares.

É na articulação dessas ações que a união de mulheres lésbicas emerge como o ponto positivo na experiência dessas mulheres. Para além dos números alarmantes, que explanam um cotidiano marcado por violências, luta e exclusão, o Dia da Visibilidade Lésbica é um momento de união e celebração de ser quem é em coletivo. Do ponto de vista político, a data é propositiva: precisamos encarar a realidade, criar mecanismos de criação de dados e usá-los para mudar essa realidade.

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