A SAÚDE DOS SUBÚRBIOS

Clínicas populares privadas tentam ocupar espaço do SUS nas periferias.

reportagem
Gabriele Roza

dados
Paulo Mota

arte
Nícolas Noel

Desmonte do sistema público de saúde e demora para agendar consultas e exames levam moradores dos subúrbios a pagarem mensalidades de clínicas particulares.

Faz pouco mais de três anos que Cláudia Lúcia Oliveira, 53, sentiu a falta da médica que acompanhava a saúde da mãe Luci Oliveira, 75, no Centro Municipal de Saúde Maria Cristina Roma Paugartten. O Centro atende a região de Bonsucesso, zona norte do Rio de Janeiro, onde as duas moram. Diabética e hipertensa, Luci se consultava com a médica do Sistema Único de Saúde (SUS) regularmente, mas no início de setembro começou a frequentar uma clínica privada.

‘‘De um tempo para cá, minha mãe só vai no público para trocar a receita com a enfermeira e só passa numa médica responsável se for necessidade. Não tem mais acompanhamento. Só que a receita da minha mãe já tem seis anos, tem muito tempo. Minha mãe não pode – sendo diabética, sofrendo de pressão alta – ficar com uma receita eterna com os mesmos remédios. Por isso nós viemos para cá, não vamos ficar esperando alguma coisa acontecer pra ir no médico.’’

Cláudia e a mãe, Luci, aguardam atendimento em clínica particular em Bonsucesso.
Imagem: data_labe

Encontramos Cláudia e Luci em uma clínica privada, conhecida por ter preços populares. Lá a consulta saiu por 90 reais, mas Luci precisou fazer também alguns exames que, juntos, somaram 630 reais. ‘‘Ela foi no endócrino que passou exame, hemograma e laboratoriais. É pago? Sim, mas pelo menos é uma garantia de uma resposta que você não tem no SUS’’, diz sua filha. 

Há dois anos, quando Luci teve paralisia facial, ela chegou a ir na clínica pública, mas o serviço de saúde completo não foi prestado. ‘‘A enfermeira viu que ela estava torta e tudo, levou a gente para a doutora e aí ela falou, ‘se a senhora tiver condições, em vez de entrar no SisReg [sistema de regulação que organiza a fila dos serviços de saúde públicos do Rio], faz lá fora a tomografia e traz para eu ver’. Eu sou da época, quando eu comecei a me cuidar no posto, chegava caixa de remédio direitinho pra gente em casa, ia na médica a cada três meses, ela te conhecia.”, diz Claudia.

Médica em uma clínica particular no Centro de Caxias, município do Rio, na Baixada Fluminense, Dalva, 65 anos, acredita que a clínica popular privada acaba sendo uma saída para quem não tem atendimento no serviço público. ‘‘Eu acho que a mensalidade do plano é 90 reais por mês pra uma pessoa só e se você coloca cinco pessoas da sua família digamos que seja 120 reais. Os hospitais públicos estão tudo sem infraestrutura. Se a gente tivesse um sistema de saúde público que atendesse… Mas não tem. Então, isso acaba sendo uma solução’’, diz a médica formada há quase 40 anos.

O pesquisador do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (IESC-UFRJ) Leonardo Mattos explica a questão. Depois da catástrofe do coronavírus que matou cerca de 129 mil brasileiros, ele acredita que deveríamos buscar uma forma de fortalecer o acesso universal e qualificar o SUS, mas o que prevalece são as agendas empresariais: ‘‘A pandemia deixou muito claro como as pessoas dependem do SUS, como é o SUS que tem capacidade de se organizar a dar respostas para a saúde da população. Se estivessemos querendo fazer uma discussão séria, estaríamos falando em reduzir a participação dos planos privados e melhorar, ampliar e qualificar o SUS. Não discutiríamos fazer plano popular para a classe C e D, seria fazer um SUS qualificado que até as classes A e B pudessem acessar’’.

O pesquisador explica que o plano de saúde não pode ser uma solução completa para a saúde das pessoas, ‘‘quando falamos de SUS, falamos de uma integralidade, de uma atenção primária que é um serviço que tem uma vinculação territorial ligado às necessidades de cada território, um serviço que se preocupa com o perfil epidemiológico de cada local e com a vinculação das famílias naquele serviço. O plano de saúde não, é uma outra lógica, é algo simplesmente pontual e do consumo.”

Serviço privado de saúde com mensalidade, mas que não é plano?

Thiago Basílio, subcoordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do Rio, explica que as clínicas populares, como a que Luci se consultou, não são vinculadas a planos de saúde, ‘‘elas não estão sujeitas à regulamentação Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e às leis dos planos de saúde porque formalmente não são um  plano de saúde, funcionam como se fossem prestadores de serviços que se juntam e fidelizam o consumidor mediante ao pagamento de uma prestação, que funciona com o número de consultas limitadas, uma rede restrita. Essa é uma realidade atual do nosso país’’.

‘‘Nos planos de saúde propriamente ditos, até 2015, nós tínhamos 50 milhões de pessoas, mais ou menos um quarto da população do Brasil. Só que com a crise dos últimos anos esse número já caiu para 47 milhões. Com a pandemia e a crise financeira das famílias, a tendência é diminuir ainda mais. Há uma possibilidade concreta de aumentar esses prestadores de serviço, que decidem se juntar para fidelizar o cliente mediante a um contrato de saúde mais barato e acessível para aqueles que não conseguem ter acesso aos planos’’, explica o defensor.

‘‘É uma situação que eles adotaram, então essas clínicas populares que têm todas as especialidades estão crescendo em decorrência dessa demanda.”, conta a médica Dalva. “Só não têm internação. É ambulatório, mas a gente faz um trabalho bom. Quando comecei minha vida profissional na Baixada [Fluminense], peguei muita gente com anemia, insalubridade, orientava a ferver a água, já que não tinha filtro. Orientava sobre o aproveitamento integral dos alimentos, tudo muito ligado a educação’’. 

Rafaela Pereira, 27, moradora da Baixa do Sapateiro, favela do Complexo da Maré, explica porque prefere fazer seus procedimentos em clínicas particulares: ‘‘Quando eu preciso ir no médico é uma coisa rápida. Eu procuro o lugar sempre mais barato e que eu consiga resolver logo, até mesmo porque eu trabalho em shopping, então eu tenho apenas uma folga na semana. Se eu pegar para ir para o público, eu vou fazer uma consulta e daqui mais um mês eu vou conseguir fazer os exames, então já ficaria ruim para mim’’.

É a quarta vez que Rafaela vai à ginecologista em uma clínica particular em Bonsucesso. ‘‘O bom é que eu saio daqui com o resultado na mão. Normalmente eu procuro mais o particular. Se eu passar mal, uma coisa rápida, aí eu procuro a UPA [Unidade de Pronto Atendimento]. Recentemente tive que ir na UPA e fui muito bem tratada, fiz exame de sangue e de urina, mas exames mais cuidadosos, eu preciso pagar pra ter uma coisa mais rápida.’’

Entre o público e o privado: a quem interessa o desmonte do SUS? 

Equilibrar-se na corda bamba entre os preços das clínicas particulares e a demora dos exames no SUS não é exclusividade de Rafaela Pereira. Já faz mais de cinco anos que Clebio Augusto de Souza, 64 anos, se consulta em uma clínica popular próximo a sua casa em Ramos, zona norte do Rio de Janeiro. ‘‘Venho aqui pelos valores [baixos] e, no final, o resultado é o mesmo do [serviço de saúde] caro. Agora vou fazer os exames de risco cirúrgico, aqui no particular. Já a cirurgia eu vou fazer lá no Hospital dos Olhos, um hospital público em Caxias’’, explica. ‘‘Aqui eu posso agilizar porque se eu for fazer por lá, vai demorar muito tempo, então eu corto o tempo para eu fazer a cirurgia mais rápido. e

O uso de clínicas de saúde particulares populares alivia emergências dos pacientes, mas não significa que eles deixam de sobrecarregar o SUS. ‘‘O discurso é ‘o SUS está muito sobrecarregado, não temos dinheiro para colocar no SUS, então aumentar os planos de saúde baratos, os planos populares vai desafogar o SUS’. É sempre esse argumento vazio, que não se justifica porque as pessoas não deixam de usar o SUS para usar o plano de saúde, principalmente nesses planos baratos e populares com coberturas restritas, que quando precisa de um procedimento mais complexo, os planos de saúde negam a cobertura e tem que procurar o SUS de novo. Essas questões são totalmente coerentes com a ideia de Teto de Gastos que é você restringir ao máximo o orçamento do SUS, torná-lo mais precário ainda para que as pessoas tenham que recorrer a outras fontes como como os planos populares’’, diz o pesquisador  da UFRJ Leonardo Mattos.

Clebio Augusto de Souza, 64, realiza exames pré-operatórios em clínica particular.
Imagem: data_labe

O sistema público de saúde brasileiro, criado pela Constituição de 1988, é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo e garante acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Há quatro anos, o SUS sofreu um golpe grande: a Emenda Constitucional 95, de 2016, conhecida como a emenda do teto de gastos, que alterou a Constituição brasileira de 1988 para instituir o Novo Regime Fiscal, diminuindo os gastos com a saúde dos brasileiros no decorrer dos anos. Mas além dela, o SUS continua recebendo outras ameaças. 

Leonardo Mattos diz que a agenda de privatização do SUS está sendo novamente requentada. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, afirmou no final de julho, em entrevista à rádio Eldorado, que um grupo de deputados já começou a analisar a estrutura do SUS para propor projetos que melhorem a gestão em prol da modernização e melhor qualidade do SUS. Em nota, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) demonstrou preocupação a respeito do anúncio  de Maia: “modernizá-lo não pode ser um pretexto para abrir as portas aos setores privados, citados pelo presidente da Câmara como interlocutores da referida proposta, interessados na posse de bens públicos”. 

No fim de 2019, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que reúne empresas do mercado de saúde complementar do Brasil, apresentou um projeto de alteração da legislação que previa a possibilidade de previsão de cobertura fragmentada em pacotes específicos. Ou seja, o usuário poderia contratar um pacote de serviços para uma especialidade, mas se precisasse de um outro atendimento teria que se recorrer ao SUS. Apesar da diretora-executiva da FenaSaúde, Vera Valente, negar que a entidade tenha encaminhado um projeto de lei pronto com as propostas, três deputados federais e um senador confirmaram ao ​JOTA ​terem recebido o anteprojeto via FenaSaúde.

‘‘Nos últimos meses as empresas de planos de saúde movimentaram-se acerca do tema, fazendo circular projetos de lei, sínteses de propostas e outros documentos que guardam retrocessos diversos: vão da diminuição de coberturas, liberação de reajustes de mensalidades e maiores prazos para atendimento, passam pelo fim do ressarcimento ao SUS, pela redução de multas e desonerações tributárias, até o enquadramento de prestadores e a desidratação da ANS’’, diz o manifesto público assinado pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), OAB Nacional, Procons e Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e outras entidades que alerta os riscos aos direitos dos consumidores.Entre a conta do plano de saúde e o desmonte do SUS equilibram-se os brasileiros. A vida tem que continuar.

Estrangulamento do SUS gera boom de clínicas privadas nos subúrbios.

Os entrevistados desta reportagem moram na Área de Planejamento 3.1 do Rio de Janeiro. Ela engloba bairros suburbanos da zona norte carioca: Bonsucesso, Maré, Ramos e Manguinhos. Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e análise feita pelo data_labe, existem na área 293 estabelecimentos de saúde. A maior participação é da rede privada, com 83% do total, composta, em sua grande maioria, consultórios isolados ou clínicas. Isto mostra a dependência que a população local tem de serviços privados de saúde para realizarem um exame ou uma consulta breve.

De acordo com o gŕafico acima, onde as cores simbolizam o ano de expedição do estabelecimentos, percebemos que, enquanto a criação de estabelecimentos públicos segue estável com o tempo, mais de 50% dos estabelecimentos privados foram abertos depois de 2015, época que inicia o grande estrangulamento do financiamento do SUS, e que descamba na PEC do teto de gastos, aprovada em 2016.

Segundo os dados do CNES, os estabelecimentos privados escolhem bem onde querem se instalar: Manguinhos e Maré são territórios mais reconhecidos como favela pelo senso comum. Neles, não temos participação da rede privada como em outros bairros. Se não fossem os investimentos em saúde pública da Saúde da Família e da ENSP estes bairros não contariam com cobertura de aparelhos de saúde.

Colaborou nesta reportagem o editor do data_labe Fred Di Giacomo.
Você também pode ler no UOL.

Com um PIX você apoia o data_labe a seguir produzindo conteúdos como este!

Use o QR code no app do seu banco ou copie a chave aleatória.
Você pode doar a quantia que quiser.

00020126360014BR.GOV.BCB.PIX0114313705010001935204000053039865802BR5909Data Labe6014Rio de Janeiro62190515DOACAOSITELIVRE63048F94

Todo mês uma seleção braba de conteúdos sobre dados, tecnologias, favelas e direitos humanos.

Pular para o conteúdo