reportagem:
Gabriele Roza
arte:
Giulia Santos
Nícolas Noel
vídeos
Eloi Leones
edição
Fred Di Giacomo
Como construir um ‘‘novo normal’’ onde a alimentação saudável seja acessível para todos?
Quantos fins de mundo são necessários para acabar com a fome e com a insegurança alimentar? Hoje, segundo a ONU, 820 milhões de seres humanos passam fome. É mais do que toda população da Europa e da Oceania juntas.
Ativistas e pensadores, como Ailton Krenak, Lisiane Lemos e Sidarta Ribeiro, têm imaginado novos futuros possíveis para a vida pós-pandemia, mas, infelizmente, os dados mostram que futuro seguirá desigual. Como resultado da crise gerada pela pandemia da covid-19, a população em condições de extrema pobreza na América Latina e Caribe pode chegar a 83,4 milhões de pessoas em 2020, 15,9 milhões a mais do que hoje. E, com mais pobreza, vem mais fome.
Segundo pesquisa, realizada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o aumento do desemprego e a queda na renda geram uma mudança na dieta das famílias. Muitas pessoas passam a optar por alimentos mais baratos e de menor qualidade nutricional, com mais gorduras saturadas, açúcar, sódio e calorias.
O nutricídio da população negra
No Brasil, é fácil intuir qual a população mais afetada por esses dados. Insegurança alimentar atinge mais a população negra, nordestina, rural e com pouco estudo, segundo a PNAD 2013 do IBGE. A pesquisa revela que, em 2013, um em cada três domicílios cujas pessoas de referência eram negras (29,8%), estava em insegurança alimentar enquanto os lares referenciados em brancos na mesma situação era praticamente a metade (14,4%, ).
É difícil discutir a qualidade da comida que chega à mesa quando muitos cidadãos, sobretudo negros, ainda lutam pela sobrevivência. No entanto, o acesso à comida de qualidade precisa ser debatido. O nutricídio, termo cunhado pelo Dr. Llaila O. Afrika para descrever a destruição nutricional da raça negra, cresce a todo vapor. Um terço dos alimentos consumidos cotidianamente pelos brasileiros está contaminado pelos agrotóxicos, segundo dados da Anvisa de 2011. Em 15 anos, o consumo de agrotóxico no Brasil aumentou mais de 180%. Só nos últimos 2 meses, 118 novos agrotóxicos foram liberados.
“Pô, mas por que não está todo mundo morrendo de câncer, então?” A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) ressalta que os efeitos crônicos podem ocorrer meses, anos ou até décadas após a exposição aos agrotóxicos, manifestando-se em várias doenças como cânceres, malformações congênitas, distúrbios endócrinos, neurológicos e mentais.
A grande questão que a pandemia escancara é que pessoas negras e pobres morrem também pela alimentação. Não só pela falta dela, mas pelo que ela causa. Hipertensão e diabetes, doenças que integram o grupo de risco da covid-19, são mais comuns em negros. Segundo pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde em 2017, a diabetes mellitus tipo II atinge as mulheres negras 50% a mais do que as mulheres brancas. De acordo com o estudo do ELSA-Brasil, a hipertensão atinge 30,3% dos brasileiros brancos e 49,3% dos pretos.
Não por acaso, o número de negros mortos por coronavírus é cinco vezes maior no Brasil, como mostra a análise dos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde feita pela Agência Pública. O Boletim Epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo evidencia que o risco de pessoas negras morrerem pela covid-19 é 62% maior em relação à população branca em São Paulo.
Uma agricultora ecológica na favela
Ana Santos, agricultora urbana e moradora da Favelinha, uma das favelas do Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, mostra que um outro futuro é possível. Ela é co-fundadora do Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), um espaço que busca promover a soberania alimentar a partir da agricultura urbana na Serra da Misericórdia, a última área verde da Leopoldina, região da Zona Norte do Rio. Ana e outras mulheres do CEM produzem comida saudável e sem agrotóxico na favela e para a favela.
A horta comunitária vai na contramão ao sistema alimentar que produz fome e doenças, gera mais desmatamento, desequilíbrio ecológico, assassinatos de indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais em conflitos agrários. A partir do CEM e da rede Arranjo Local da Penha, elas criaram um outro coletivo para organizar as entregas dos alimentos da horta para os moradores que passam por situação de insegurança alimentar na pandemia.
O agronegócio pode querer ser pop, mas 70% da comida que enche a barriga dos brasileiros é produzida em pequenas propriedades por gente como a Ana. O MST, principal movimento brasileiro na luta pela reforma agrária, é, também, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Apesar disso, o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) paralisou os projetos de reforma agrária desde 2019.
A luta socioambiental é uma luta das pessoas mais pobres. Quando a calamidade ambiental ou sanitária acontece, quem sofre mais são as pessoas negras e periféricas. Não são vítimas apenas da fome, mas também de inundações, poluição, intoxicações e doenças epidêmicas. Uma pesquisa britânica prova que limitar o aumento da temperatura média global a dois graus centígrados poderia evitar 3,3 milhões de casos de dengue por ano na América Latina e no Caribe. De acordo com o estudo, o Brasil seria o maior beneficiado. O país evitaria 500 mil casos de dengue por ano até 2050. Mas, se a emissão de gases se mantiver no ritmo atual, teremos 7,5 milhões de novos casos de dengue por ano no mundo. Este é apenas um exemplo do que as mudanças climáticas, em decorrência das atividades humanas como a agropecuária e o desmatamento causam na população dos países mais pobres.
Ana Santos mostra que não precisamos inventar a roda. Ela se recorda do quintal da avó com plantações de milho, árvores frutíferas e plantas medicinais. ‘‘Era um hábito na família, era tão comum, fazia parte da gente e a gente não se dá conta que esse é o futuro. Podemos trazer o que era passado pro novo. A agroecologia ao mesmo tempo que é uma técnica, é também movimento de resgate de uma cultura, de uma ancestralidade’’.
Esta reportagem faz parte da parceria entre o data_labe, a Gênero e Número, a Énois e a Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (COVID-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias.