Reportagem: Vinícius Lopes e Ruth Osório
Dados: Samantha Reis e Paulo Mota
Edição: Fred Di Giacomo
Arte: Juliana Messias
“Não deixar ninguém para trás?” O lema ressoado pelas organizações internacionais, como a ONU, e também por aparatos governamentais do Rio de Janeiro se torna questionável ao se pensar na situação do saneamento básico nas favelas e periferias cariocas. Análises de dados coletados de forma cidadã nos territórios unidos a levantamentos sobre o Diário Oficial do Rio de Janeiro indicam disparidades no acesso ao saneamento básico entre as favelas e o asfalto.
A falta de políticas públicas pensadas especificamente para favelas faz com que os moradores dessas comunidades enfrentem empecilhos na manutenção de uma vida saudável e segura. Segundo dados do Censo Maré, realizado pela Redes de Desenvolvimento da Maré, há cerca de 140 mil habitantes no complexo; no entanto, ao passo que esse número segue aumentando, percebe-se que as intervenções do governo no território não acompanham o mesmo ritmo.
O Complexo da Maré é formado por 16 comunidades diferentes que abrigam cerca de 9% de toda a população residente em favelas do Rio de Janeiro. A maioria dos moradores relata que já teve problemas com saneamento básico, sendo o esgotamento sanitário, o recordista de reclamações na região. Os números são do Cocôzap, projeto do data_labe que monitora e gera dados sobre saneamento básico na Maré. Somente em 2021 foram registradas 223 queixas relacionadas à falta de infraestrutura de saneamento básico. Em primeiro lugar estão as queixas por esgoto, com 122 denúncias; em segundo, as reclamações relacionadas ao manejo de resíduos sólidos, com 72 registros; e em terceiro, problemas ligados a alagamentos, com 14 relatos. Os dados fazem jus a um relatório publicado no Diário Oficial do Rio de Janeiro, que aponta que, entre os serviços mais solicitados à prefeitura do Rio de Janeiro em 2021 através da Central 1746 de Atendimento ao Cidadão, estão a remoção de entulho e resíduos.
Uma andorinha só não faz verão
Quando se trata das articulações em saneamento básico no território, a luta dos moradores e lideranças locais se destaca. Nos anos 1970 foi eleita a primeira chapa de liderança comunitária na Maré através de eleições diretas e, a partir daí, a luta por direitos sanitários passou a ter mais força – e não parou até os dias de hoje.
Além das lideranças locais na luta por uma qualidade melhor nos serviços ligados ao saneamento, a Maré conta com uma sub administração da Comlurb com o mesmo objetivo. Segundo Wanderson Evangelista, atual gerente da Comlurb da Maré, o complexo de favelas possui uma equipe suficiente de garis e equipamentos para o manejo de resíduos sólidos (basicamente, lixo e entulho), mas ressalta que deveria haver políticas públicas voltadas aos problemas estruturais do local.
Por mais que a Comlurb preste o serviço de coleta diariamente, a gente percebe que faltam ações governamentais que apoiem no que tange à educação ambiental. A gente faz a nossa parte para incidir na educação, mas a Maré é enorme, é preciso mais atores envolvidos”, afirma Wanderson, que atua na Comlurb há 25 anos.
Na contramão do esperado, a Prefeitura do Rio de Janeiro deixou de investir cerca de um milhão de reais do orçamento previsto na limpeza e manejo de resíduos sólidos em comunidades em situação de vulnerabilidade social em 2020. É o que consta na prestação de contas daquele ano, publicada em Diário Oficial. E quando se trata de investimentos na destinação sustentável do lixo, o número é ainda mais gritante: 29 milhões de reais deixaram de ser alocados para esse fim, mesmo com a disponibilidade orçamentária.
O Plano Municipal de Educação Ambiental da Cidade do Rio de Janeiro, definido pelo Decreto 48.159 de 2020, deveria garantir, entre outros, o “fortalecimento da educação ambiental nas comunidades e o incentivo à participação comunitária no reconhecimento dos seus direitos e deveres para a garantia do bem viver e o do exercício ativo da cidadania”. No entanto, percebe-se a ausência desse suporte governamental no território.
A educação ambiental é tida como uma demanda urgente na Maré, uma vez que essa auxiliaria na desnaturalização de problemas enfrentados pela maioria dos moradores, assim como reforçaria o papel dos cidadãos na manutenção de um ambiente mais saudável e adequado. Nesse sentido, Wanderson ressalta que há em voga ações da Comlurb que visam a transformação de locais de acúmulo de lixo em canteiros de jardim, mas afirma que uma política de educação ambiental contínua auxiliaria na manutenção desses espaços – e faria com que essas ações fossem multiplicadas.
Um caminho possível?
Lançado em maio deste ano, o programa “Favela com Dignidade” surge como uma iniciativa que busca levar serviços e garantir a cidadania aos moradores de territórios muitas vezes esquecidos pelas políticas públicas. O projeto é uma iniciativa da Secretaria Especial de Ação Comunitária e, junto à Prefeitura e demais órgãos municipais competentes, visa assegurar direitos essenciais a moradores de comunidades do Rio de Janeiro. Em nome do projeto, Carla Valladão ressalta que nos últimos seis meses, 53 favelas e comunidades em situação de vulnerabilidade social foram atendidas com serviços públicos, desde o saneamento à educação.
Entre as iniciativas do projeto, está o “Recicla Comunidade” que irá impulsionar a geração de renda aos catadores e auxiliar na reciclagem de resíduos sólidos dessas comunidades. O programa já começou a ser implantado em Manguinhos, na zona norte do Rio, e a expectativa é que seja reaplicado nas demais comunidades. Em nota, a Secretaria Especial de Ação Comunitária (SEAC) ressaltou que “política pública tem que se fazer valer em todas as comunidades”. A gente tem que diminuir o número de pessoas vulneráveis. E para isso, temos que trabalhar juntos, unidos. Dar voz e vez aos mais necessitados de serviços da Prefeitura”.
Para a apuração desta reportagem, utilizamos a plataforma Querido Diário para consultar os diários oficiais que contivessem os termos “resíduos” e “resíduos sólidos” para o município do Rio de Janeiro, no período de 2016 a 2021. Foram encontrados 492 registros que atenderam à busca. Os 50 registros mais recentes foram lidos na íntegra pela equipe de dados e classificados em “nenhuma”, “baixa”, “média” e “alta” relevância. Querido Diário é uma iniciativa da Open Knowledge que usa tecnologia para tornar os conteúdos dos diários oficiais dos municípios brasileiros mais transparentes e acessíveis à população. As edições do D.O. do Rio de Janeiro utilizados nesta reportagem estão disponíveis para download nos seguintes links:
Essa reportagem foi produzida em parceria com Querido Diário e com o jornal Maré de Notícias.