SEXTOU NA QUARENTENA

É possível se divertir sozinho em tempos de coronavírus?

reportagem
Gabriele Roza

arte
Giulia Santos

edição
Fred Di Giacomo

Reunimos aulas de funk, bailes de djs, cantos de louvores e saraus poéticos que têm rolado – à distância – em plena quarentena.

O fim de semana chegou e tudo que o um terço das pessoas do mundo que estão em quarentena quer é ‘sextar’. Para os 59,9% dos brasileiros que aderiram ao home office em tempos de coronavírus, segundo a empresa de monitoramento de mercado Hibou, é hora de desligar o computador e aproveitar o tempo longe da rotina de trabalho. As sextas-feiras são especiais, é o momento compartilhado com amigos e crushes, dia que as pistas das boates, bailes e festas estão abertas e os bares estão cheios.

A vibe continua sendo essa na noite de sexta-feira, mas ninguém pode sair para dançar. O distanciamento social é uma das principais medidas para conter o avanço da pandemia de coronavírus. As estimativas do estudo realizado pelo Imperial College, de Londres, mostraram que medidas como isolamento, fechamento de escolas e universidades, proibição de reuniões de massa e eventos públicos em 11 países europeus evitaram 59 mil mortes até a última terça-feira (31).

Baile das Isoladas
Mas não é só porque é momento de ficar em casa que a alegria da noite de sexta-feira não pode ser vivida. As mais de duas mil pessoas que acompanham as aulas de dança online do AfroFunk, projeto de ações e conteúdos para o movimento funk carioca, sabem disso. Às 21h, de sexta, muitas delas sincronizam a live do Instagram com a televisão, afastam os móveis e lembram que ainda podem dançar.

Antes da quarentena, as aula de Afrofunk ocorriam duas vezes por semana na Lapa, Rio de Janeiro.

‘‘Para mim foi uma descoberta, as pessoas pediam aula online, mas eu achava que ia ser uma coisa que não ia funcionar. Esse alcance que a gente está tendo, a gente não tinha noção’’, diz a professora e chefe do projeto Taísa Machado, conhecida pela arroba @chefonamermo. Os treinos do Afrofunk ocorriam duas vezes por semana na Lapa, no Rio de Janeiro, para aproximadamente 40 mulheres, mas com a quarentena, elas precisaram mudar para o Instagram e o público ampliou 50 vezes. ‘‘Acho que as pessoas estão num choque e a dança tem uma coisa terapêutica, você coloca o corpo pra mexer. Tem essa coisa também do Afrofunk falar sobre liberdade, quais são os limites impostos ao corpo. Independente da quarentena e de toda essa situação do coronavírus, eu acho que as mulheres estão sedentas por liberdade’’, diz Taísa.

Na live, mulheres comentam que assistem aos treinos em todos os cantos do Brasil: Belém, Salvador, Maringá, Fortaleza, Santa Catarina, Maceió e até em outros países como Argentina, México, EUA, Inglaterra e França. ‘‘Melhor hora da semana!’’, ‘‘Uma da manhã aqui na Alemanha e eu tô como… que saudade!’’, ‘‘Melhor sextou da quarentena é com a chefona’’, são alguns dos comentários. 

Glória Grace, 21 anos, faz parte do grupo de risco para o Covid-19 e não sai de casa no Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro, para nada há três semanas. É que portadores de doenças crônicas (como asma, hipertensão e diabetes) têm mais chances de morrer de Covid-19. Um estudo publicado no British Medical Journal (BMJ) mostra que 48% dos pacientes falecidos em Wuhan, na China, avaliados pela pesquisa tinham hipertensão crônica.

Antes da quarentena, Glória Grace tinha se programado para ir na oficina do Afrofunk: ‘‘até marquei a data no meu planner, quando foi decretado estado de calamidade pública e da necessidade de isolamento social. Meu planos foram rasgados”. Apesar disso, Glória sente que as aulas ao vivo, transmitidas pelo Instagram, ajudam-na a se conectar com outras mulheres de alguma forma. ‘‘O mais incrível é que mesmo distante, eu me sinto perto. As meninas comentam a live, comentam que estão suando, eu estou também e fico pensando ‘caraca, elas estão se sentido como eu’”.

Além da Taísa Machado, outras quatro pessoas trabalham no Afrofunk e, como as aulas presenciais não podem mais acontecer, elas passaram a receber contribuição colaborativa para o trabalho das aulas ao vivo. ‘‘A gente está trabalhando muito mais agora porque queremos devolver toda essa consideração. Tem muita coisa acontecendo no mundo inteiro, quem tem acesso está à distância de um clique. Então, as pessoas estão escolhendo abrir o seu sextou com a [nossa] aula e isso está me deixando muito feliz e muito impulsionada’’, diz Taísa. 

Quando acaba o treino de funk, não falta programação. Dá até para ficar por ali mesmo, já que depois da aula tem um ‘set live’ do DJ Maximo Cutrim, ator e DJ que faz parte da equipe do Afrofunk. Ou, então, partir para outras lives como a do Dj Rennan da Penha, um dos mais famosos do funk carioca, responsável pela popularização do estilo 150 bpm. 

A Batekoo, plataforma com foco na juventude urbana, negra e LGBT+, que produz festas desde 2014 em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro lançou a Batekoo Live House. O projeto, transmitido via Instagram e Youtube, é uma programação de live streams com shows, aulas de dança e conteúdos interativos. ‘‘Em dias de tensão e incertezas, iremos levar a Batekoo para dentro da casa de vocês’’, declararam no Instagram. No conforto da própria casa, dá para sonhar acordado com as pistas de dança e fazer alguns movimentos. O importante é não deixar o corpo parado. 

https://www.instagram.com/p/B-SNFB8gC9A/

A psicóloga Shaiene Balbino, que atua em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro, garante que este pode ser um ótimo momento para dançar. ‘‘Trancados em casa a gente só restringe o raio. Você não está saindo, mas o que sente, seja no espaço pequeno, seja no espaço amplo, está dentro de você. E a dança ajuda a acessar esses locais no seu corpo e na sua mente que no seu dia a dia você não consegue, você não acessa’’.

Quem louva o corona espanta

Enquanto alguns pastores como Silas Malafaia e Valdemiro Santiago dão declarações que vão contra as medidas de isolamento recomendadas pela OMS, evangélicos moradores do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, tiveram uma ideia original para seguirem suas orações. Marcaram de cantar um louvor juntos, cada um da sua janela, aos domingos.

A agente comunitária de Saúde Ana Rita Santos, 50 anos, diz que  andava mal por ficar isolada em casa. Como faz parte de um grupo de risco para o coronavírus ela não podia nem sonhar em sair de casa. Cantar junto com os vizinhos a animou.‘‘A quarentena é muito  estressante. Não poder sair de casa pra nada é horrível, foi muito bom ver todo mundo cantando e ver que todo mundo está na mesma, juntos. Foi um respiro.’’

A psicóloga Shaiene explica que a quarentena acaba favorecendo os quadros de estresse. Para ela, a música pode ajudar as pessoas a passar a quarentena sem afetar a saúde mental. ‘‘A música ajuda a extravasar, sair da realidade, distrair um pouco, existe muita propriedade terapêutica de você ouvir música, de você dançar, cantar, de esquecer do que te aflige. Para além de ser um entretenimento nesse período de quarentena, nessa tensão toda que já está posta, você consegue sair um pouco de só falar e pensar em coronavírus’’.

Outros líderes religiosos também têm organizado cultos onlines como é o caso do pastor Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho, e o padre mineiro Luiz Cesar Moraes, que alegrou seus fiéis ao acionar os filtros do Instagram, sem querer, no meio de uma missa virtual.

“Se eu quiser beber eu bebo, se eu quiser fumar eu fumo”  (Só não saio pra rua.)
Para todo dia não ser o mesmo dia na quarentena de Obalera de Deus, 29 anos, ele e a vizinha resolveram aproveitar o sábado juntos, cada um de sua casa na Vila União, bairro de São João de Meriti, região metropolitana do Rio. ‘‘Eu estava doido para tomar uma cerveja, tinha recebido de um amigo um encarte de promoção de chope para incentivar o comerciante local diante do que tá acontecendo’’. Obalera comentou com a vizinha da promoção e ela falou: ‘‘vamos fazer o nosso “sabadou”? Vou botar a cerveja para gelar e daqui a pouco te chamo’’.

A vizinha gravou um storie no Instagram compartilhando o momento com  o amigo.

‘‘Peguei um banco e um copo, fiquei na minha varanda e ela ficou do quintal dela. Ela colou com um cooler de cerveja, pegou a JBL dela e botamos um som. A vizinha ficou na cadeira de praia e passamos a noite de sábado assim, proseando, cada um na sua casa, respeitando a quarentena, respeitando o espaço pra evitar qualquer tipo de possibilidade de transmissão’’.

Já para Steph Minucci, 19 anos, criada em Guaianazes, zona leste de São Paulo, mas que hora mora na Barra Funda, a quarentena não tem sido fácil. Steph costumava sair o fim de semana inteiro. Ficar em casa sempre a deixou agoniada por morar em um apartamento pequeno. ‘‘Desde muito jovem saía, jogava bola. Domingo se não tinha o que fazer, colava na Avenida Paulista. Eu trabalho o dia inteiro, chega a noite, quero curtir. Ia beber, ia no cinema eu e minha namorada, sempre foi assim.’’.

Agora, para se distrair quando termina o trabalho, Steph passa o tempo no videogame Playstation 4: ‘‘jogo muito League Of Legends (LOL), só que está sendo um problema porque estou com enxaqueca, tendinite. Tenho que diminuir ao máximo tudo isso porque se eu não estou olhando para uma tela [tanto no trabalho, quanto no lazer], eu estou dormindo. Isso não só faz mal para a saúde psicológica como física’’.

Steph Minucci joga Playstation 4 durante a quarentena.

A poesia está em casa
Aos 18 anos, o famoso poeta pernambucano Manuel Bandeira recebeu o diagnóstico de que tinha tuberculose e pouco tempo de vida. Mas a doença não matou Manuel, que faleceu aos 82 anos. Assim como a tuberculose não venceu o poeta, a Covid-19 não matou a poesia. Só botou ela de molho em casa.

Uma das cenas mais empolgantes da literatura brasileira na última década foi a dos saraus de periferia e slams que se espalharam pelo Brasil. A poesia estava na rua. E agora? Sem poderem organizar seus eventos tradicionais, escritores e editoras têm se virado com as redes sociais. É o caso de Mailson Furtado, escritor e produtor cultural, da cidade de Varjota, sertão do Ceará. 

‘‘Eu era muito resistente às lives, recebi o primeiro convite e fiquei meio sem graça para participar, mas quando entrei foi muito bacana. Diferente de uma entrevista normal de TV, na internet a gente tem um contato direto com o público então é muito bacana esse feedback de mão dupla, direto e bem rápido’’, diz o escritor de origem periférica que venceu o Prêmio Jabuti de 2018, o mais prestigiado, nas categorias livro do ano e poesia por “À cidade”, livro de versos em homenagem a sua terra.

O escritor Mailson Furtado participa de lives sobre literatura na quarentena.

Desde o início da quarentena, Mailson organiza e acompanha lives sobre poesia e literatura independente e brinca ‘‘já vi live sobre o que vai ser a live depois da quarentena’’. Para ele, as lives ajudam a mais pessoas terem acesso à arte e ressaltam o papel democrático das redes sociais. ‘‘Acho que estamos usando a rede social em um formato até mais consciente nesse período. Estou no interior do Ceará e posso acompanhar qualquer debate literário que acontece na Alemanha e antes isso não acontecia. Acredito, também, que a arte depois disso pode ser um pouquinho mais valorizada, a literatura, o cinema, por essa democratização e necessidade das pessoas fugirem desse caos a partir da arte.’’

3 virais contra o vírus
Não somos só nós, reles mortais, que estamos amargando a quarentena em casa. Músicos, celebridades, poetas, influencers e atletas estão cancelando shows e eventos ao redor do mundo para colaborar com o isolamento e se protegerem da Covid-19. Alguns deles têm aproveitado os dias em casa para compor hits sobre o coronavírus.

“Não tem bacanal na quarentena”,  Baco Exu do Blues
Feito em apenas três dias, Baco disponibilizou nesta segunda-feira (30) o EP com nove faixas inéditas. Dentre os temas das músicas, racismo, coronavírus e Big Brother Brasil.

“Quarentena”, MV Bill
Rapper mais famoso da Cidade de Deus, MV Bill, lançou música nova para conscientizar a população sobre os riscos da nova pandemia e cobrar medidas dos políticos e governantes.

“Bactéria” FDP, MC Rayban (Raibam)
Dia  30 de março, Marcelo D2 apresentou esse novo clássico do funk carioca para seus seguidores no Twitter. Mc Raybam (em alguns lugares, escrevem Mc Raibam) viralizou com seu funk contra o coronavírus direto do  Saara (não o deserto, mas a rua de compras no Rio).

Esta reportagem faz parte da parceria entre o data_labe, a Gênero e Número, a Énois e a Revista AzMina na cobertura do novo Coronavírus (COVID-19) com recortes de gênero, raça e território. Acompanhe nas redes e pelas tags #EspecialCovid #COVID19NasFavelas #CoronaNasPeriferias

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