COCÔZAP RECEBE PRÊMIO
PERIFERIA VIVA 2024

Dedicado a todas as pessoas que não tiveram escolha, mas que resistem e lutam por uma vida melhor

Texto: Maria Ribeiro
Edição: Elena Wesley
Arte: Nicolas Noel
Ilustrações: Difavela – Ederson Pereira

28 de novembro de 2024. Brasília. Palácio do Planalto.

Naquele dia, enquanto segurávamos o troféu do Prêmio Periferia Viva, era impossível não refletir sobre a jornada que nos trouxe até ali. O CocôZap, um projeto nascido na Maré, estava agora entre as 178 iniciativas reconhecidas por transformar realidades nas periferias do Brasil.

Maria Ribeiro e Inna Meireles na cerimônia de premiação no Palácio do Planalto. Foto: Larissa Lopes

Mas essa conquista vai muito além de um prêmio. É sobre vidas, resistências e uma luta diária para superar a ausência de direitos.

Durante a cerimônia, o Presidente Lula lançou o Programa Periferia Viva, o maior esforço de urbanização e redução de riscos nas favelas da história do Brasil, com investimento de R$63 bilhões até 2026 no Plano Municipal de Redução de Riscos e a garantia de CEPs para todas as moradias. Essa é, sem dúvidas, uma grande conquista!

Presidente Lula assina decreto que cria o programa Periferia Viva. Foto: Leandro Vaz

Confesso que ainda não caiu a ficha. Não apenas pela importância do momento, mas pela sensação de dever cumprido. Ao olhar para trás, vejo até onde o CocôZap chegou  e aonde ele pode ir.

Desde 2016, a missão do data_labe tem sido compreender como quem mora na periferia, especialmente as mulheres, as pessoas LGBTQIAPN+ e a população negra, pode usar a tecnologia e a ciência de dados para se tornar protagonista na construção de políticas locais, que escrevam o presente e o futuro de suas vidas. É uma reivindicação muito clara: é pra que a gente não seja apenas objeto de estudo, e  sim pessoas que produzem, analisam e geram dados sobre sua própria realidade.

O CocôZap começou em 2018 como um experimento. Queríamos usar a tecnologia para pensar soluções sobre um dos maiores problemas nas favelas da Maré: a falta de saneamento básico. Não éramos especialistas, mas éramos moradores, sentindo na pele as consequências dessa negligência. O objetivo era provar como a lacuna de dados sobre as favelas tem sido um dos grandes agravantes da ausência do Estado nesses territórios.

Foram quatro anos de mobilização até alcançarmos, em 2021, todas as 16 favelas da Maré. Triplicamos nossa base de dados, fomos certificados como Tecnologia Social pela Fundação Banco do Brasil e ficamos entre os finalistas brasileiros na categoria “Cidades Sustentáveis”.

As vozes de quem ajudou a construir o CocôZap

O protagonismo dessa conquista, de alcançar todas as favelas da Maré pelo mapeamento do CocôZap, veio do trabalho das embaixadoras do projeto: Elenice, Ruany, Gabriela e Juliana. Elas foram as grandes responsáveis por expandir a base de dados. Em 2020, em plena pandemia, elas registraram 229 queixas que nos permitiram cruzar dados e dar contexto aos problemas sanitários do bairro.

Embaixadoras do CocôZap: Elenice, Ruany, Juliana e Gabriela. Foto: Maria Ribeiro

Assim como elas, eu também sou cria da Maré. Cresci na favela Rubens Vaz e lembro muito bem das chuvas que alagavam minha casa. Minha mãe, com um balde, tirava a água que invadia o corredor. Meu irmão me carregava nas costas para evitar que eu adoecesse, atravessando ruas onde a água dava nos joelhos, cheia de ratos e baratas.

Por várias vezes, fui procurada por amigos e vizinhos para ajudar durante as enchentes. Essas pessoas próximas, que cresceram comigo, foram personagens das nossas reportagens, conteúdos e podcasts. Triste, muito triste, termos tantas histórias para contar sobre tantas faltas… 

Quando comecei a trabalhar na comunicação do CocôZap, em 2020, eu não sabia quase nada sobre saneamento básico. Entretanto,  entendi rápido como a falta dos serviços sempre fez parte da minha vida. Hoje, sei que contar essas histórias não é apenas falar sobre mim, é mostrar a realidade de muitas famílias da Maré e de outras periferias do país.

Ao longo dos anos, o CocôZap construiu pontes. Trabalhamos com o coletivo LUTeS em projetos de educação ambiental e geração cidadã de dados para os alunos do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, na Nova Holanda. Em 2024, a parceria resultou na instalação de dois biodigestores na Maré, geridos pelos próprios alunos.

Nossa mobilização também nos uniu a jovens de outros territórios periféricos, criando a Coalizão O Clima é de Mudança, para discutir os impactos das mudanças climáticas nas favelas do Rio de Janeiro. Foi ali que mergulhamos no universo das Conferências das Partes (COPs), aprendendo termos técnicos e lutando para fazer a voz das periferias ser ouvida a nível global.

Evento que lançou em 2022 a Coalizão O Clima é de Mudança. Foto: Mistério Filmes

Muita história passou por esses rios de encontros. Entre tantas atividades e projetos do CocôZap, um dos desafios mais impactantes foi a experiência no território: conversar com moradores, entender os limites físicos e sociais de cada favela e incidir em um ambiente tão diverso. Quando íamos às ruas com as embaixadoras, sentíamos ainda mais forte o gosto amargo da desigualdade e, por isso,  as palavras do Presidente Lula na premiação do Periferia Viva me afetaram tanto. 

Após uns goles de água para tentar engolir o choro e a emoção, o Presidente iniciou seu discurso com a seguinte fala:

Esse encontro aqui é o encontro dos invisíveis. Hoje é o dia em que a periferia do país se torna visível para o governo e para a sociedade. No Brasil tem gente que pode escolher a sua profissão: escolhe ser jornalista, engenheiro, sociólogo, qualquer coisa, mas tem outra parte da sociedade que fica com o que resta. Da mesma forma tem uma parte do povo brasileiro que escolhe onde morar, o cara escolhe a rua, escolhe o bairro, escolhe o centro, o condomínio e os outros ficam com o que restam”.

Chorei. Naquele momento, soube que não estava sozinha. Estavam comigo minha família: minha mãe, que criou seis filhos no interior do Ceará; meu irmão, que largou a escola para nos sustentar; e todos os moradores da Maré que, assim como eu, não tiveram escolha. Pessoas que sempre precisaram dar um jeito, criar formas de sobreviver, conseguir água, lutar para ter um banheiro em casa, temer a chuva e enfrentar a certeza de que, quando ela vem, leva muito do que foi tão difícil conquistar.

Ninguém mora em área de risco porque quer, a gente só não teve escolha.

Dito isso, ainda me assusta ouvir do Presidente da República que, apenas em 2024, em pleno século XXI, a periferia se torna visível para o governo e a sociedade.

Assim que Lula assumiu o microfone, chamou para estar ao seu lado, no início de sua fala, Guilherme Simões, secretário Nacional de Periferias. Ele foi recebido com muitos aplausos, exibindo seu cabelo black muito bem cuidado e estruturado, um reflexo poderoso de como ele se apresenta e representa a população negra dentro do Governo. O secretário lembrou ao presidente que a espera foi longa para que as periferias finalmente tivessem a oportunidade de pensar em um “viver” e não apenas em “sobreviver” dia após dia.

Após o comentário do Presidente, feito em tom de brincadeira sobre a demora para lançarem o programa, o secretário respondeu:

As periferias brasileiras têm o direito de planejar o seu futuro e o seu amanhã. E o programa Periferia Viva é a prova disso. De fato, demorou muito mesmo. Foram 524 anos para as periferias brasileiras terem o direito de pensar no amanhã.”

Presidente Lula convida o secretário Guilherme Simões para participar de sua fala. Foto: Leandro Vaz

Não haveria frase mais impactante para resumir o significado daquele momento. A periferia ocupou o Palácio do Planalto, assim como estamos ocupando os lugares que nos foram historicamente negados. Foi lindo de ver, foi lindo de viver, e estaremos atentos para que toda assistência e investimento cheguem, de fato, às periferias.

Dedicamos esse prêmio a cada pessoa que construiu o CocôZap, que dedicou seu tempo e trabalho para pensar alternativas para um futuro mais digno para a Maré.

Um gigante obrigada a: 

Anderson Gonçalves, Adriano Mendes, Andreia Gonçalves, Breno Souza, Bruna Pierroult, Clara Sacco, Elena Wesley, Eloi Leones, Elenice Lopes, Fernanda Távora, Gabriela Silva, Gabrielle Vidal, Gilberto Vieira, Giulia Santos, Iris Rosa, Juliana Marques, Juliana Oliveira, Juliana Machado, Kezia Antero, Maria Ribeiro, Matheus Albuquerque, Maykon Sardinha, Messias, Nicolas Noel, Polinho Mota, Priscilla Souza, Rafael Santo, Ruany Jenner, Ruth Osório, Samantha Reis, Stefany Vital, Vinicius Lopes, Victoria Oliveira, Vitor Mihessen, Wanderson Lira.

Não baixe a guarda, a luta não acabou.” — Criolo

Viva o CocôZap! Viva a Periferia!

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